Um dos crimes mais hediondos da História!
Estava dando uma olhada no meu
acervo, a fim de escolher um livro sobre o qual escrever em meu blog, quando vi
Canibais
– paixão e morte na Rua do Arvoredo, de David Coimbra (Porto Alegre:
L&PM, 2006) e pensei: bem, não é policial, enquadra-se no gênero histórico,
mas traz uma trama digna de ser lembrada pelos brasileiros, principalmente
porque foi inspirada em fatos reais! A ficção partiu de um dos crimes
considerados mais hediondos do planeta: a história do açougueiro José Ramos e
de Catarina Palse, que atraíam suas vítimas a fim de assassiná-las, fazendo de
sua carne a linguiça mais deliciosa da província de São Pedro (Nossa!).
A realidade macabra
Os crimes da Rua do Arvoredo ocorreram
entre 1863 e 1864, na cidade de Porto Alegre, a antiga província de São Pedro.
José Ramos,
ex-soldado da Polícia, após assassinar Carlos Klaussner e se apropriar de sua
casa na antiga Rua do Arvoredo (atual Rua Fernando Machado); assumiu também a
profissão da vítima: tornou-se um próspero açougueiro.
Passado
algum tempo, Ramos conhece Catarina Palse, de beleza estonteante, e, ambos,
estando aliados, fortalecem-se como peritos nos crimes, enriquecendo às custas
dos bens e, não se sabe ao certo, da própria carne das vítimas.
Perfil dos criminosos
Ramos era
uma ambiguidade em si mesmo: culto, frequentava os espetáculos do Theatro São
Pedro, apreciando a música erudita e vestindo-se muito bem para os padrões da
época. Por outro lado, a forma como assassinava grotescamente suas vítimas – com
um machado que lhes partia o crânio, a degola muito utilizada nas revoluções
gaúchas, o esquartejamento hábil e certeiro – revelava um sujeito frio e
calculista, um verdadeiro sociopata, sem escrúpulo algum na sua busca por
poder.
Catarina
Palse, da Hungria, diferenciava-se das demais mulheres recatadas da província,
o que, por si só, chamava a atenção dos homens e enraivecia as esposas. A
húngara não hesitava em usar suas qualidades físicas para atrair as vítimas do
sexo masculino até sua casa, sempre com a desculpa de que o marido, o
açougueiro Ramos, estava viajando. Quando adentravam a casa sinistra, no
entanto, percebiam tarde demais que se tratava de uma armadilha.
A linguiça de carne humana
Após
assassinar e esquartejar as vítimas, o açougueiro Ramos tratava de descarná-las
e temperá-las, preparando a linguiça mais famosa da região. Essa era uma forma
eficaz e lucrativa de se livrar dos cadáveres. Os ossos ele jogava num poço desativado
do pátio da casa.
Contudo,
a ideia de transformar os habitantes da cidade em canibais inconscientes era
chocante demais. Muita controvérsia surgiu a respeito deste detalhe, e nos
autos do processo, algumas folhas passaram a desaparecer oportunamente. Por que
desapareceram? Justo as folhas que davam conta da parte mais monstruosa do
crime? Talvez porque o escândalo seria imenso – um trauma difícil de se superar
ao confirmar o canibalismo nos clientes do açougueiro. Mas se o processo não
confirma, boatos é que não faltaram à época; e até nos dias atuais, a tal rua
do Arvoredo ainda causa arrepios e assombra muita gente.
A ficção de David Coimbra
O autor
se baseia em personalidades históricas e personagens fictícias para compor seu
enredo. José Ramos, Catarina Palse, o chefe de polícia Dario Callado, a Bronze,
a baronesa do Gravataí, o príncipe de Ajudá, entre outros, existiram. Já os
três amigos Antunes (o padeiro), Brasiliano (o anspeçada) e Walter (o
sapateiro) foram criados pelo autor.
Diversos
detalhes na ficção situam o leitor no tempo, ou seja, no século XIX: a rotina
sombria da província oitocentista, atormentada à noite por assaltos de escravos
foragidos, aflita durante o dia por rivalidades entre raças (portugueses contra
alemães, alemães contra portugueses, e todos contra os negros), bem como
detalhes específicos da cultura local, das crenças e dos costumes marcam o
romance como histórico.
A
descrição da cidade, por exemplo, é bastante verossímil à época da narrativa. O
autor descreve até o sistema sanitário local, em que várias residências
possuíam apenas um buraco aberto no solo, nos fundos da casa, onde os moradores
faziam suas necessidades fisiológicas. Também descreve que outras “construíam
patentes de madeira, os dejetos eram depositados em uma espécie de barril, que,
depois de cheio, era esvaziado em algum terreno baldio ou mesmo na rua,
enchendo o ar da cidade de miasmas insuportáveis, sobretudo no sufocante calor
do verão” (p.95-6). Outros pagavam assinaturas pelos serviços dos cabungueiros:
“Os cabungos eram barris de madeira que serviam de latrina. Uma vez por semana,
um funcionário chamado cabungueiro, geralmente negro, iam às residências que
possuíam assinatura, retirava o cabungo e trocava por outro, limpo e desinfetado
com creolina. O cabungo cheio era fechado e carregado de carroça até um trem,
que o levava até uma volta do Guaíba, onde teria seu conteúdo despejado”
(p.96).
O leitor
também consegue identificar o tempo do romance por meio das antigas crenças,
hoje consideradas ingênuas após a evolução da ciência: “... de algumas
contraíra doenças venéreas, como a terrível blenorragia. Isso apesar dos
cuidados que tomava. Depois do sexo, procedia como o recomendado para expulsar
do corpo a contaminação – urinava com três jatos fortes, às vezes quatro.
Sentia-se limpo, então” (p.134).
A questão
racial não poderia ficar de fora. Não num período tão cheio de desavenças e
preconceito, tempo em que se dava o povoamento do sul, tempo em que os
brasileiros se sentiam ameaçados pelos imigrantes, os quais prosperavam devido
à experiência adquirida na Europa, enquanto os da terra amargavam pobreza e
miséria. Os negros, em época de escravidão, obviamente também sofriam e se
diferenciavam dos demais, pois sequer eram considerados seres humanos: “Ramos
não permitia que negros ou pardos andassem nas calçadas ao lado dos brancos.
Exigia que os cadáveres dos cativos fossem logo retirados das ruas para serem
sepultados, o que se tratava de uma medida higiênica – amiúde, quando um
escravo morria, seu relapso proprietário se livrava do corpo simplesmente
rojando-o em algum terreno baldio perto de casa, como se fosse lixo” (p.148).
Mas não
são apenas as descrições históricas que enriquecem a obra. Nela, um personagem,
o sapateiro Walter, de princípio um homem comedido e fiel à dor de sua viuvez,
vai acabar provocando grande reviravolta no percurso natural dos assassinatos,
graças à súbita paixão despertada ao conhecer Catarina. Ele pode ser a redenção
dela, a promessa de uma nova vida, mas, para isso, terá que sobreviver ao
assombroso Ramos. Um personagem fictício que, para infelicidade de Catarina em
carne e osso, não existiu. Dizem que a bela, após vários anos na prisão, acabou
morrendo de frio e fome nas ruas da cidade. Uma vingança providenciada pela
própria vida depois de tantos atos cruéis junto ao açougueiro. Na ficção,
contudo, o mesmo não acontece e, respeitando os leitores que certamente
desejarão ler o livro após esta matéria, não revelarei o destino da húngara.
A lenda urbana na ficção
É
maravilhoso poder percorrer as ruas de uma Porto Alegre que não vivi,
acompanhando os passos dos personagens do romance, como os de Brasiliano e seu
simpático cão Januário. Subir as ladeiras, cruzar a rua da Praia, tudo isto num
cenário de mais de um século atrás. Já havia pedido a um amigo, natural da
capital gaúcha, que me levasse até lá, como se, de certa forma, meus olhos
pudessem resgatar um passado que não pertence a mim. Não temporalmente. Apenas
geograficamente. A violência dos crimes do açougueiro ficou eternizada na
memória de todos nós. Virou lenda. Continua sendo contada de geração a geração.
O medo foi substituído pela curiosidade, mas a reação diante de tamanha frieza
continua sendo de um absurdo sem igual. A obra de David Coimbra ficcionalizou o
que estava no imaginário coletivo e eternizou, por meio de palavras, o que, de
qualquer maneira, jamais poderá ser esquecido por nenhum habitante de Porto
Alegre, ou, melhor dizendo, do mundo todo.
Afinal, o
que você sentiria ao saber que comeu uma saborosa linguiça... feita do cadáver
de um vizinho seu?
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