D. Sônia era uma velhinha sem filhos, com alguns parentes
aqui e ali, e cheia... cheia de dinheiro. A família, repleta de inveja, sequer
telefonava no seu aniversário. De certo, pensavam que
dinheiro comprava tudo, inclusive o papel de fazer companhia a um idoso.
- E a D. Sônia? – perguntavam os vizinhos aos parentes da
idosa.
- Tá lá, cheia do dinheiro – era só o que respondiam, como
se isso resumisse tudo. Era nítido até certo desprezo na resposta. Parecia que
a boa senhora pecava por ter dinheiro, como se fosse algo sujo, algo que ser
humano nenhum desejasse ter.
Os anos foram passando e, obviamente, não traziam consigo
nada de melhor a d. Sônia. Seu corpo, cansado; e o coração, sozinho, foram
amargando o passar do tempo.
Um dia, ela caiu doente. Acamada, foi visitada por amigos
das redondezas, vizinhos, e até a diarista Albertina largou tudo que fazia para
correr até a generosa d. Sônia, que a tirava do aperto várias vezes e abastecia
a cozinha de suprimentos para alimentar os numerosos filhos.
- Ai, d. Sônia, agora a senhora não pode mais ficar nesta
casa imensa sozinha. Vou cuidar da senhora, virei todos os dias.
Albertina se transformou em enfermeira, cozinheira, amiga,
filha, enfim... em tudo que d. Sônia precisava. E encheu a mansão com seu falar
alegre, rápido e sem correções gramaticais. Contava desde as novelas até as fofocas do bairro, e tanta disposição foi preenchendo o vazio da
idosa, que logo se recuperou e pôde voltar à rotina com saúde dobrada.
Os parentes logo ficaram sabendo, por boatos, pois há tempos
que os pés não frequentavam a casa da idosa, que a diarista ganhava importância
e podia representar um risco ao futuro dos bens que lhes seriam destinados.
Passaram, então, a ver d. Sônia semanalmente, revezando-se entre si no
sacrifício, a fim de avaliar o negócio de perto e garantir que d. Sônia não
fizesse besteiras por causa da idade avançada. Aproveitavam, também, para fazer
maledicências a respeito de Albertina. Segundo eles, essa não seria uma pessoa
confiável, de modo que era um risco considerável manter pessoa com tão má
reputação em casa habitada somente por uma idosa indefesa.
D. Sônia silenciava diante de tais comentários. Apenas ouvia
os parentes, enquanto tomava sua xícara de chá no deck que dava de
frente para a piscina. Não refutava nem uma nem outra palavra, e assim, os
parentes julgavam estar abrindo os olhos da velha e conquistando a confiança
dela. E a relação, antes opaca e inexistente, passou a ficar colorida e
próxima. Jantares aos parentes foram dados, ocupando, enfim, a imensa mesa da
sala de jantar. Todos riam alto, comendo e bebendo com satisfação, tirando
proveito do dinheiro que num passado não tão distante “repudiaram”.
Mas numa manhã de sábado ensolarado, a idosa voltou a ficar
doente. Era folga de Albertina, então, estando com a casa cheia de familiares, d. Sônia pediu
que lhe servissem o café da manhã na cama. Não demorou para que uma bandeja bem-servida
fosse colocada à disposição. Em seguida, pediu ajuda para fazer a toalete, ao
que a sobrinha se apresentou, levando a tia e ajudando-a no lavabo. Mais tarde,
sentiu fortes dores abdominais, pelo que pediu que alguém pegasse uma fralda
geriátrica no armário e colocasse nela, evitando, assim, uma sujeira
desagradável na cama de lençóis importados. A fralda não tardou a aparecer, mas
dessa vez, ninguém se prontificou em ajudar a idosa, afirmando não terem
experiência no assunto.
O dia seguinte foi mais embaraçoso. D. Sônia sequer
conseguia comer sozinha e derrubava desastrada a comida que tentavam lhe dar,
deixando a roupa uma completa imundície. Agora, nem em pé conseguia ficar, e,
na ausência da fralda, os lençóis deixaram de ser brancos para dar lugar a um
tom amarelo e marrom, úmidos e malcheirosos. Um dos parentes, rendido, disse afinal:
- Chamem a diarista. E chamem logo.
A segunda-feira começou radiante para d. Sônia. A casa
voltou a ser habitada apenas por ela e por Albertina, dedicada e solícita, como
sempre. A velha levantou-se com plena disposição. De roupa limpa e asseada, nunca
se sentira tão bem antes. O mal-estar de um idoso, d. Sônia o sabia, era um meio único e
infalível de revelar grandes verdades.
Cristiane Krumenauer é autora de Atrás do Crime e Chamas da Noite (romances), Memória, Imaginação e Narração (crítica literária) e da série Contos da Namíbia (contos de suspense)
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