Cresci ouvindo meu pai dizer que eu não era melhor do que
ninguém. Demorou para aprender que ninguém era melhor do que eu.
Diante da situação caótica em que o Brasil se encontra,
penso no essencial que deixamos de aprender. Quer dizer que sou de bem, desde
que haja policiamento nas ruas?
Não entendo. Impossível compreender. Alguns dizem: “É porque
você não está nesta situação”. Será que não estou? Será que nunca estive?
Comecei a trabalhar fora aos 16 anos de idade. Antes disso, contudo,
já trabalhava em casa, na confecção de calçados do atelier de meu pai, num
período que antecedeu uma crise que devastou as fábricas calçadistas do sul do
país. Trabalhava duro e cursava o Ensino Médio à noite – fazia todos os
trajetos casa-trabalho-casa-escola-casa, de bicicleta, uns prazerosos 17
quilômetros que me obrigavam a manter a forma. Fazia frio (ainda faz) no
inverno sulista, muito frio. O vento noturno congelava minhas mãos, até eu descobrir
uma versão barata de luvas de couro, que impediam o ar gélido de penetrar a
roupa.
Meu salário, tão reduzido, era investido em educação. Sempre
foi assim. Sempre fui assim. Quando me formei no colégio, acho que eu era a
única com lágrimas nos olhos. Por ter me formado? Não. Por não ter certeza de
que conseguiria pagar a faculdade, a duas horas de distância de onde morava.
Foi quando soube de um concurso para secretária de escola. Pagavam melhor do que eu ganhava: dois salários. Era minha chance. Estudei (bastante) e passei em primeiro lugar. Daí em diante, a vida foi melhorando. De secretária à professora, de professora à escritora. Meu baixo salário, tenho que dizer, sempre foi revertido nos estudos: curso de inglês, livros, ensino superior, especialização e mestrado. Nada foi gratuito, mesmo porque é quase impossível fazer uma federal e trabalhar concomitantemente. E eu precisava trabalhar. Não só pelos estudos, mas pela alimentação, aluguel, roupa, enfim.
Minha história, embora resumida, justifica minha falta de
compreensão: por que tanta violência? Latrocínio, saques? Parece que a população
só estava esperando a oportunidade para revelar o verdadeiro caráter, ou a
falta dele.
Não pretendo me prolongar, então, termino com um apelo:
Pais e mães, ensinem seus filhos a serem alguém, não a terem
algo.
O que se tem hoje, envelhece,
estraga, se perde. Entretanto, o ser que se forma, transforma,
trabalha e luta. Por um mundo melhor, menos degradante. O dinheiro não pode
ser, em nenhuma circunstância, melhor do que o próprio ser humano. Mas infelizmente,
é ele que está levando o mundo à morte.
Meu apelo vai aos pais, diretamente aos pais. Porque paguei por meus estudos, mas não pelos valores que aprendi. Esses vieram cordial e diariamente de minha família. Foram gratuitos, e os mais valiosos que recebi na vida.
Cristiane Krumenauer
Autora de Atrás do Crime; Chamas da Noite;
Memória, Imaginação e Narração e da série Contos da Namíbia
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