Acompanhe novidades sobre a literatura policial da autora e de outros grandes nomes do gênero.
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
AMAR AMARGO
O pesadelo
teve início quando ela compareceu na entrevista de emprego, candidatando-se à
vaga de secretária. Senti uma dor na boca do estômago e um oscilar intenso bem
debaixo dos meus pés, como se o edifício fosse sucumbir e eu não tivesse nada a
que pudesse me agarrar e evitar uma terrível queda. Sim, tamanho foi o
pressentimento que tive. Senti-o lá no íntimo de meu ser: aquela era uma mulher
perigosa demais para trabalhar para o meu marido e não tive sequer coragem de
ver nos olhos dele que reação estava tendo diante daquele espetáculo feminino.
Meus
argumentos para dar preferência à outra candidata foram se esvaindo como as
águas de um rio que sofre diante da seca. Nada adiantaria: ela tinha atributos
suficientes para ser a nova secretária, atributos que, na verdade, excediam
suas obrigações profissionais. E o pior: todos pensavam da mesma forma!
Certo dia,
num evento de encerramento de semestre, a gerente que, aliás, era minha amiga
íntima, aproximou-se de mim com dois coquetéis:
- Beba, Jane,
mas não beba muito. Melhor manter os olhos bem atentos e não acredito que
estando bêbada, você consiga fazer isso.
- Sua
insinuação me incomoda, Claire.
- Não é com a
minha insinuação que você deve se preocupar, Jane. Olha só! – proferia ela,
indicando discretamente com os olhos a aproximação entre meu marido e a
secretária, que já não mais faziam questão de esconder um caso.
- Claire,
você jamais se casou e não sabe como é ter um relacionamento duradouro com
homem algum! – disse-lhe, tentando magoá-la. Uma atitude mesquinha da minha
parte, eu estava me vingando da pessoa errada. Logo arrependi-me e tentei me
desculpar.
- Tudo bem,
Jane, tudo bem! Deve ser doloroso para você, só que esse tipo de situação me
faz ver vantagens infinitas de não ter tido relacionamentos sérios!
- Eu sei,
Claire, eu sei. Mas sabe de uma coisa? Essa secretária, a Aline, é vaidosa
demais. Nos últimos meses, deve ter trocado todo o guarda-roupa.
- É claro,
não é, Jane? Tudo com o dinheiro do SEU marido, repito: do SEU marido!
Baixei a
cabeça, um pouco zonza com as palavras diretas de minha amiga. Eu já sabia de
tudo, mas, ainda assim, doía e era um tanto desnecessário ouvir o óbvio de
outra pessoa.
- Não
terminei meu raciocínio, Claire, por favor – solicitei, bebericando meu
coquetel sem tirar os olhos de Aline. – Aline é vaidosa, como você mesma pode
perceber, e deve se sentir nas nuvens quando está ao lado de meu marido. Por
que está apaixonada? Não, decididamente não, embora não saiba disso. O que a
atrai nele são os olhares dos outros. Sim, dos outros. Ela se sente em êxtase
quando passeiam de mãos dadas, chamando a atenção de várias pessoas, intrigadas
com tamanha diferença de idade. É como se isso lhe regozijasse a vaidade,
entende? Ela gosta do que os outros devem pensar sobre o casal irreverente que
eles formam: enquanto um pensa “Uma gostosona como essas com um velho?”, o
outro deve pensar “Esse cara deve estar cheio da grana”, e isso faz bem para o
ego de Aline.
- Jane,
ouvindo-lhe falar assim, não entendo como você consegue continuar nessa
situação! Sempre soube o quanto você é racional e nunca sentimental, no
entanto, tanta racionalidade me assusta um pouco, sabia? Isso não lhe dói?
- Dói, claro
que dói. Mas falo do ponto de vista de Aline, não do meu, e isso me ajuda a não
desabar de uma vez por todas. Bem, prosseguindo, é a vaidade que nutre esse
caso entre os dois amantes. Há dois obstáculos, porém, capazes de fazer ruir em
mil destroços o relacionamento dos dois.
- Posso
adivinhar? Um, pelo menos?
- Vá em
frente!
- A beleza
dela não vai durar para sempre e quando seu marido perceber que ela também está
envelhecendo, vai perder o tesão?
- Talvez,
embora isso leve muito tempo. Aline é jovem demais e pode conservar sua beleza
por mais duas décadas! Até lá, meu marido estará com mais de 75 anos e espero
que esse relacionamento não dure tanto assim.
- Bem, então,
que obstáculos são esses? – perguntou Claire, sem entender aonde eu pretendia
chegar.
- Claire, se
você a analisasse de perto, saberia que existe um germe nessa garota que a
impedirá de prosseguir numa situação inconstante como essa.
- Germe?
Jane, você não está bebendo muito, está?
É claro que
eu estava. Já havia tomado três coquetéis e estava com o estômago vazio. Ainda
assim, meu raciocínio era perfeito e eu tinha que compartilhá-lo com minha
amiga.
- Germe, sim.
Essa garota, em seu íntimo, possui alguns valores familiares bem consistentes.
Percebi isso algumas raras vezes, quando comprime os lábios ou quando pisca
lentamente. Quando a vaidade esmorece, os valores morais a atormentam e ela se
culpa por se relacionar com um homem casado.
- Como você
pode saber disso, Jane? Num comprimir de lábios? Num piscar lento? Ora, sua
racionalidade está em xeque depois dessa!
- Sim,
Claire, é isso mesmo. Bem, o outro obstáculo é um filho. Quero dizer, um dia
ela vai querer ter um filho, e João Carlos não poderá realizar esse desejo,
como nós duas bem sabemos.
- Valores
familiares e um filho? Não sei se concordo com você, Jane! Seu marido pode
chegar ao ponto de pedir o divórcio, você já pensou nisso? Então, o primeiro
obstáculo, ou seja, os valores familiares que a atormentam pelo fato de ela ter
um caso com um homem casado não serão mais problema!
Sim, Claire
podia estar certa. Se José Augusto decidisse se separar e assumir o caso diante
de todos, esse obstáculo seria vencido. Duvidava que ele fosse capaz disso,
contudo, essa possibilidade existia.
- E depois...
um filho? Hoje em dia, há tantas mulheres que optam por não ter filhos! Eu, por
exemplo, sou solteira e estéril por convicção! De qualquer forma, eles podem
querer adotar uma criança, não é?
Sim,
novamente Claire podia estar certa. Podia, mas algo dentro de mim me dizia que
ela não estava.
De todo modo,
só o tempo revelaria as respostas que eu ansiava por saber. Queria estar certa:
na minha cabeça, Aline se atormentaria tanto com a culpa por se envolver com um
homem casado, que começaria a pressioná-lo a divorciar-se. José Augusto,
descontente com a pressão, deixaria claro quem estava no comando: ele, e não
uma simples secretária! Os dois discutiriam e, em seguida, fariam as pazes.
Contudo, as brigas se tornariam cada vez mais constantes. Talvez Aline passasse
a ameaçá-lo e eu teria uma vantagem enorme diante desse passo em falso da
rival. José Augusto passaria a vê-la como uma vilã que queria destruir seu
casamento, enquanto eu, que nunca sequer mencionara sua traição, passaria a ser
vista como alguém a ser protegida pelo marido. Finalmente, eu voltaria a ser
percebida por José Augusto, que, quem sabe, até voltasse a se apaixonar por
mim!
O enredo
estava escrito, eu o lia em minha mente toda vez que José Augusto chegava tarde
em casa e me tratava com desinteresse. Eu precisava manter-me firme e morder a
língua quando esta se mostrava prestes a pôr tudo a perder. Eu aguardava
ansiosamente pelo desfecho da história, embora os dias penosos demorassem a
passar.
De fato,
demorou bastante, não dias nem meses, como eu tanto desejava, e sim,
praticamente uma década! Passaram exatamente nove anos, dois meses e quatro
dias até José Augusto chegar com um semblante irreconhecível em casa. Eu sabia
exatamente o que havia acontecido, ou melhor, achava que sabia. Mas havia algo
estranho no ar, algo que eu, que sempre previa e compreendia tudo, não
conseguia decifrar.
Minha
curiosidade e ansiedade foram ao auge quando ele decidiu se refugiar no
escritório. Então era isso? Tantos anos à espera do desfecho de um maldito
relacionamento com a secretária, e ele se enclausura no escritório? Nenhuma
palavra! Nada! Apenas um olhar de morto-vivo, como se tivesse perdido alguma
coisa de si mesmo? O ciúmes tomou conta de mim, entretanto, eu continuava
tentando me controlar, afinal, a tão esperada hora chegara. Dali em diante, eu
tinha certeza de que não mais teria que dividi-lo com mais ninguém.
Sentei-me no
sofá com um copo cheio de Martini, sem gelo. Liguei a televisão e suspirei
profundamente umas cinco vezes para recobrar a calma e o controle. Em vão.
Quando o jornal das nove noticiou o assassinato de Aline, sobressaltei-me.
Céus! Assassinada? Será que foi José Augusto? Mas logo em seguida, meu coração
se aliviava: um namorado ciumento fora preso em flagrante. Namorado? Não sabia
que Aline tinha um namorado! Talvez nem José Augusto soubesse!
Abri a porta
do escritório e o vi derramando algumas lágrimas discretas. Não tive dúvida.
Não havia mais o que fazer naquela casa. O desfecho era aquele e pude
acompanhar toda a história como testemunha. De fato, parecia que eu não fazia
parte daquela trama. Arrumei minhas malas e decidi partir.
Quando estava
tocando na maçaneta da porta, José Augusto surgiu, flagrando minha partida.
Olhou-me como se estivesse me questionando: quando eu preciso de você, você vai
embora?
- Sim –
falei, mesmo que a pergunta não tivesse saído dos lábios dele. – Sou capaz de
tudo, menos disputar com uma pessoa morta.
E fechei a
porta.
A noite
estava quente e decidi dirigir com os vidros do carro abertos, contrariando os
riscos de andar assim pelas ruas de Copacabana. Um vento fresco bateu no meu
rosto e eu voltei a me sentir viva, depois de quase uma década!
Abandoná-lo
naquela hora difícil era uma vingança? Eu estava fazendo aquilo para que José
Augusto perdesse numa única vez as duas mulheres da vida dele? Não, eu apenas
havia acordado quase na mesma hora em que Aline dormira. Não era vingança. Eu
preferia chamar de coincidência. Você não chamaria assim?
quarta-feira, 25 de junho de 2014
A VÍTIMA ERRADA
Gosto de observar os seres humanos ou desumanos à minha volta, e faço isso
desde a infância. Nesse caso, as mulheres são meu principal foco de atenção,
pois parecem muito mais misteriosas e com segredos a esconder. Andam sempre
pensativas e, como eu, são observadoras e avaliadoras natas. Suas vidas vão
muito além das calculadoras e papéis burocráticos manipulados diariamente;
dizem isso mas pretendem falar aquilo; agem de um jeito, entretanto, sua
verdadeira essência é outra...
Pois bem, também sou mulher, e talvez por isso, contradigo-me, pois o ser de
minha atenção não tem o mesmo sexo que eu. E aquele que for tão observador
quanto a mim saberá os motivos de ter escolhido um homem como foco.
Atrapalho-me, valendo-me de detetive de um ser estranho às subjetividades e
melindrosidades femininas, porém, não corro o risco de ser confundida, e mesmo
de me confundir com a personagem, sendo essa do sexo oposto. Além disso, tal
criatura por si só justificar-se-á, e as razões disso são muito complexas para
serem traduzidas em palavras.
Falo-lhes de um homem quase normal: desses que podem até escutar os boatos do
trabalho, mas sem incrementar as fofocas com uma só palavra. Parece ser
bastante dinâmico, e quando decide, por fim, comentar algo, é para regozijar-se
de superioridade e sedução.
Não é maldade, é acontecimento puro e concreto (mulher pode falar “concreto”?).
Bem, estava eu a folhar as revistas de venda de cosméticos (uma terapia
encantadora!), quando entrou Fortunato (nome comum, mas que atendia aos seus
despropósitos), falando baixo como de costume, e deixando transparecer seu jogo
moral. Homem atraente aquele! Seu negócio não era filosofar a respeito de
economia ou de situação mundial, nem mesmo ousava proferir palavras de
exaltação às fêmeas para as conquistar. Sua atenção era outra... e nós,
mulheres, sabíamos disso; e foi exatamente isso que nos fez disputá-lo... até a
morte. Tais palavras podem gerar equívocos, portanto, peço-lhes que não se
precipitem. Não julguem isso ou aquilo, apenas aguardem, e tudo se esclarecerá!
Fortunato,
como vinha dizendo, era bonito, o único, inclusive, merecedor de atenções no
escritório. Subia e descia as escadarias com um sorriso que iluminava o edifício
inteiro. Falava o mínimo possível, e mesmo assim, somente com Elisabete, que de
amiga de todas tornou-se uma rival – escolha dela? Mal sabia ela, porém, que as
atenções do amigo cercava a sala inteira, não com palavras, mas com olhar de
morcego – já que fingia não enxergar. E Elisabete, que, como toda mulher
apaixonada, vendava os olhos para brincar na escuridão sem perceber os riscos
do jogo, mal entendia o conflito em que estávamos, todas nós do escritório,
envolvidas por causa daquele forasteiro sedutor.
No entanto, assim como Édipo, até mesmo na cegueira, quando alguém se corta
durante a brincadeira ou bate a cabeça na parede, a dor é sentida, mesmo sem
ver a cor do sangue escorrendo pelo rosto. E Elisabete era cega, mas não tinha
o corpo-máquina, não era insensível.
Fortunato (finalmente, não posso me esquecer de falar sobre ele!) não namorava
há três anos. Aparentava uns trinta, era atlético e bem-humorado. Não se
envolvia nem mantinha contatos confidenciais com ninguém do trabalho, o que era
lamentável, pois todas as paredes tinham olhos, corações e ouvidos. Somente
falava, e ainda assim sobre assuntos desperdiçáveis, com Elisabete – a cabra-cega no brinquedo.
O jogo, então, foi se desenrolando e tudo indicava que haveria um desenlace que
desequilibraria todos os jogadores no final. Fortunato comandava completamente
tudo, ao menos aparentemente. Se estava sempre do lado de Elisabete, estava ao
mesmo tempo olhando sedutoramente para todas nós. E se olhava somente para ela,
não era Elisabete a quem se destinavam todos os seus sorrisos.
Certo dia, porém, um flagrante prometeria ter feito-lhe cair a máscara. Pouco
antes das 9 horas da manhã, quando todos estavam chegavam ao trabalho, vimos
uma mulher que trajava um vestido marrom e longas botas escuras, aguardar o
mancebo. Estranhamos aquela novidade e nos mantivemos atentas: quem seria
aquela perua? Fortunato chegou logo em seguida e a palidez, assim que se
deparou com tal moça, tomou-lhe conta do corpo inteiro. Ainda gélido, pediu
licença ao chefe, afirmando que teria de resolver um problema com uma irmã sua,
depois a tomou pelo braço, fechando a porta atrás de si cautelosamente. A
princípio, todas respiramos aliviadas, já que Fortunato chamara-lhe “irmã”,
somente mais tarde é que compreendemos o que realmente havia se passado. Foi
nessa ocasião também que notei alguma coisa estranha na tez de Elisabete:
finalmente, ela parecia preocupada. Talvez fosse ciúme, naquele tempo, eu não
soube decifrar o que havia de errado.
O tempo foi passando, e Fortunato foi promovido de forasteiro e novato para
amigo íntimo do chefe. Ainda lembro que os dois se reuniam semanalmente numa
sala reservada, separada por um vidro através do qual espiávamos os braços de
Fortunato, o pescoço de Fortunato, o peito de Fortunato, e tudo o que a ele
pertencia. Enquanto lá estavam, um tom de cumplicidade era notado frequentemente.
Mas o que mais surpreendia-nos era parecerem realmente estar falando sobre
negócios. Ana Paula, a gerente de cabelos brancos e muita experiência, nada
comentava sobre aquela intimidade, mas seu semblante revelava enorme
desconfiança e insatisfação. Ainda lembro que, quatro meses mais tarde,
estávamos vendo Ana Paula juntando seus pertences pessoais e despedindo-se
lacrimejante de todos, menos de Fortunato, com o qual travou uma batalha de
olhares cortantes antes de sair porta afora.
Foi assim que Fortunato tornou-se nosso gerente e tudo indicava que não pararia
por ali. Depois disso, a relação com a Elisabete (se é possível mencionar a
palavra relacionamento) esfriou de maneira tão violenta, que a pobre cabra-cega
sentiu-se perdida na brincadeira. Percebíamos em seu rosto a desilusão certa e
temíamos pela doença de sua alma. Infelizmente, como não somos perfeitas (não
podemos negar que no início, quando não supúnhamos o tamanho da desesperança da
amiga) até sentimos algumas gotas de alegria polvilharem nossa autoestima ao
vermos Fortunato livre, à disposição de nossas vistas gulosas. Só Deus sabe o
quanto nos custou, anos depois, essa alegria egocêntrica e pecaminosa!
Trabalhamos muito e arduamente naquela época. Para Fortunato, nada era
suficiente. Tornou-se carrancudo e grosseiro, o que, apesar disso, não o
diminuiu perante nossos olhos. Era até bom quando ele nos chamava para nos
reprimir – era uma oportunidade que tínhamos de ficar a sós com ele e dele
receber todas as atenções. Essa felicidade suicida, no entanto, não durou muito
tempo; sentimo-nos trabalhando sob completa pressão e o ambiente do escritório
passou a ser intolerável. Elisabete, com o orgulho ferido, foi a primeira a
enfrentá-lo. Cinco minutos depois, porém, acabou sendo demitida. Uma hora
depois, foi atropelada. E no dia seguinte, anunciou-se seu velório. O mal-estar
tomou conta do edifício! Queríamos liberação para nos despedirmos da ex-colega,
e como resposta, obtivemos um sim acompanhado de um endiabrado escárnio.
Tudo mudou. O jogo tinha feito sua parte, e nós, jogadores, sentimos o golpe da
reviravolta. Pensamos logo em exigir uma atitude de nosso chefe; mas Fortunato,
o homem de poucas palavras, era conhecedor da arte da guerra, e antes de nós,
preparou um horripilante e falso discurso, no qual pedia demissão e afirmava
que nunca se perdoaria, pois acreditava ter sido responsável por toda a
desgraça ocorrida com aquela confiável e tão prestativa profissional.
- Peço, então, na frente de todos vocês, demissão. Porque desse dia em diante,
não serei mais capaz de viver com sobriedade, estando a culpa a dormir junto ao
meu travesseiro, a repetir aquela cena em que Elisabete fora despedida, por ter
perdido o controle irracionalmente.
Bastou esse discurso para nos tirar qualquer reação. Alguns de nós até se apiedou
do falsário, abraçaram-no e incentivaram-no a prosseguir seu excelente trabalho
de gerência. Fiquei observando-o discretamente, não o abracei nem lhe disse
palavras otimistas. Mantive-me próxima a um canto, no intento de minha
desaprovação passar despercebida; mas como vinha lhes dizendo, Fortunato era um
ótimo jogador, e todo perfeito jogador sabe reconhecer seus adversários.
Enquanto recebia abraços e apertos de mãos incentivadores, ele fixou seu olhar
em mim... e, como também sou observadora, percebi que aquilo era um sinal de
que uma guerra se anunciava! Não desviei o olhar, a guerra, portanto, estava
aceita!
Reconheci, então, já no dia seguinte, as armas iniciais que o oponente usaria.
Sobrecarregou-me tanto de notas fiscais a serem computadas, que somente pude ir
para casa duas horas depois do horário previsto. Insistiu nisso. Punha os
documentos sobre minha mesa, e ordenava com malícia:
- Vê se não digita nada errado. Se algo der errado, a responsabilidade é apenas
sua. Mas não se preocupe, em último caso, revisarei tudo. É claro que espero
não achar nenhum equívoco, entretanto, se...
- Você não achará nenhum, senhor Fortunato. Não é para errar que vocês me
pagam, não é mesmo?
Fez sinal que sim com a cabeça, e saiu remoendo-se. Trabalhei excessivamente
durante dois meses, e quando estava a ponto de perder a cabeça, surgiu o chefe
a minha frente. Estava ele extremamente bem-humorado naquele dia, e graças
àquele aparecimento, controlei-me, tomei fôlego e resolvi mudar a estratégia,
conversando habilmente com o superior:
- Olha, chefe. Talvez eu possa dar uma sugestão de melhoria para o escritório.
- Pois estamos sempre dispostos a ouvir, Clarice! Principalmente, em se
tratando de melhorias! – respondeu bonachão.
- Sabe, não me importo de fazer hora-extra diariamente. Meu ordenado tem sido
consideravelmente melhor nestes últimos dois meses. Entretanto, se dividirmos
meu trabalho com mais alguém que tenha as tarefas menos trabalhosas, não será
mais necessário que o escritório pague hora-extra.
O chefe baixou a cabeça, pensativo por um instante. Um minuto depois, voltou a
olhar para mim. Sorriu, e disse que minha ideia tinha sido perfeita. Voltei
então, satisfeita, para minha mesa, não sem antes olhar alegremente para
Fortunato, que mordeu o lábio inferior e calou-se, resignado no seu canto. A
primeira batalha estava ganha; por outro lado, eu sabia que a guerra ainda
prometia continuar por um bom tempo.
Calados, eu de um lado da sala, Fortunato do outro, mas de frente para mim. Sei
que percebiam os olhares que trocávamos, talvez até minhas colegas
invejavam-me, porém, tudo isso porque não conseguiam perceber a real afronta
disfarçada de simpatia mútua. No almoço, para piorar, Fortunato era só atenção
para comigo: fazia questão de me servir a salada e a água mineral. Sentava-se
sempre ao meu lado e fazia questão de perguntar-me sobre assuntos pessoais:
fingia-se interessado em tudo – família, hobbies, estudos... Talvez
ninguém notasse nossa guerra íntima, mas minhas respostas, que aparentavam ser inofensivas,
agrediam ferozmente meu adversário. Este também era sutil em seu jogo, de forma
que nossa disputa dava a impressão de uma recíproca amizade e, para as
interessadas em Fortunato, indicava o prenúncio de um relacionamento.
Refletindo bem, não posso dizer que nunca ficara deslumbrada com o falsário.
Atraente, maduro, inteligente e aparentemente simpático, era um conquistador
nato. Mexia com os nervos de todas nós, e não fosse Elisabete ter morrido e sua
máscara caído para mim, talvez tivesse continuado apaixonada por ele (está
certo, não tinha lhes contado isso antes, talvez por escrúpulos. Mas agora que
deixei escapar, não pretendo lhes negar: fui realmente apaixonada por Fortunato
– aquele ambicioso crápula!). E como havia afirmado antes, ele logo surgiria
com uma nova arma. Pois bem... foi a arma da sedução o próximo passo de meu
inimigo.
Aquele tempo foi um dos mais difíceis da minha vida. Eu sei... contradigo-me,
atrapalho-me. Paixão e ódio, naquela época, eu não soube diferenciar bem.
Arrependi-me depois, no entanto, ainda hoje me pergunto se eu saberia
compreender o que se passou se nada daquilo tivesse acontecido. Na verdade, tento
me confortar, justificando que eu precisava pagar para ver! Ficava indecisa,
tensa, dividida entre o bem e o mal. Para ser sincera, foi Fortunato quem me
despertou meu lado esquerdo, meu lado cruel e perverso. Sem ele (outra desculpa
confortante!), talvez eu não tivesse conhecido as ambiguidades tão evidentes em
todos os seres humanos!
Como ia dizendo, Fortunato havia mudado de estratégia, partiu para a sedução.
Eu, que sempre fora a primeira a chegar ao escritório, passei a ser a segunda.
Chegando lá, deparei-me certa manhã, com ele em frente à porta da sala, a ler
concentrado, seu jornal. Abriu seu sorriso radiante ao me ver chegar, foi
completamente atencioso e galante... Fortunato sabia, sempre soube o que fazia.
Ainda lembro da primeira vez que o vi desequilibrado; ele, naquela hora, também
percebeu que dali em diante, acabaria se perdendo. Mas vamos ordenar os fatos:
isso não é assunto para agora. Voltando à cena daquela irreverente recepção no
escritório, vi o antigo Fortunato voltar a ser o que aparentava ter sido antes
da revelação. Parecia sincero e quem não o conhecesse, juraria que estava
apaixonado.
Passou, então, a esperar-me diariamente naquele mesmo local. Eu sabia, de fato,
das suas intenções, só não tinha consciência de que eu não era tão forte quanto
pensava. Havia estado apaixonada por ele, de fato, mas tudo havia se
desmanchado em cinzas. Foi acreditando nisso, então, que acabei cedendo ao seu
jogo, acreditando friamente que tinha total controle sobre aquela partida. Ele,
finalmente, num dia chuvoso, ofereceu-me uma carona depois do trabalho. Não
aceitei, e disse categoricamente que não precisava de favor algum. Um minuto
depois, contudo, analisando e confiando que nunca perderia o comando, batia no
vidro do carro e nele entrava, completamente encharcada. Convidei-o para
entrar... maldita mania de me envolver em perigo! E enquanto preparava o café,
na cozinha da qual podia vê-lo na sala sem ser percebida, vi-o analisar móvel por
móvel e objeto por objeto até percorrer ligeiramente com o tato, os livros que
havia na estante. O arqui-inimigo estava, enfim, reconhecendo o campo de
batalha. E se verificava rapidamente meus livros, foi com singular agilidade
que achou meu diário. Nada fiz, não o interrompi nenhum minuto sequer. Tinha o
controle da situação: ele nada poderia achar de estratégia bélica num diário
abandonado há longo tempo. Vi-o folhá-lo com irremediável perspicácia, até um
cartão cair. Juntou-o, olhou para a cozinha a ver se eu me aproximava, dobrou-o
e enfiou-o no bolso. Foi nesse instante que entrei, a fim de surpreendê-lo
naquele ato vergonhoso. Fortunato ainda tentou disfarçar e devolver o diário ao
seu antigo habitat imperceptivelmente. E quanto a mim, fingi-me distraída,
adocei seu café e passamos a conversar como esses amigos que parecem não ter
segredos um com outro.
Não deveria, mas gostei do passatempo. Senti-me forte. Fortunato não era,
enfim, o guerreiro irredutível como temia. Tanto que nossos encontros passaram
a se tornar mais frequentes e com a frequência, acabei tornando-me a cabra-cega
do jogo. O mundo dava voltas, e desde então eu nunca mais duvidei disso.
Foi num instante de distração e empolgação alcoólica que Fortunato vendou-me as
vistas. Não, a culpa não foi dele. Eu mesma decidi ocupar-me apenas com seu
lado direito e esquecer tudo que via nele de nefasto e inescrupuloso. Ele soube
envolver-me, é certo. Beijou-me e percorreu meu corpo com suas mãos quentes e
afoitas. Reduziu-me, finalmente, a uma mulher que precisava, e muito, ser
amada, mesmo sabendo da ilusão que revestia o conto de fadas. Pois bem,
amanhecemos juntos, e no despertar, percebi o quanto sua estatura era maior que
a que eu supunha, o quanto era forte e maciçamente onipotente. O meu rival
havia, recorrendo ao cansaço, vencido uma batalha. Fiz de tudo para sair da
brincadeira e não ter o mesmo fim de Elisabete, mas ele havia posto a venda em
meus olhos com tanto vigor que ainda hoje a levo, meio rasgada, em minha bolsa.
- Bom dia, meu anjo! – disse ele, beijando-me acidamente os lábios.
Esse relacionamento corrosivo aprisionou-me por mais de um ano, período no qual
sua ascensão no escritório foi exultante. Julgava ter-me ao seu lado, e
infelizmente, estava mesmo extremamente subjugada a ele. Enquanto isso, seus
mandos e desmandos tornavam o local de ganha-pão um suplício para os capazes e
um inferno para os fracos. Inteligentemente, ele manteve-me neutra. Evitava
qualquer contato comigo durante o trabalho, de forma que minhas colegas
pensavam que a amizade colorida havia claramente desbotado em sua essência. À
noite, entretanto, transformávamos meu quarto num pecaminoso céu de venturas
mentirosas. E teria continuado assim, aprisionando-me, se Raflévia, a esposa do
chefe, não tivesse surgido no escritório e sido apresentada ao braço direito do
marido.
Foi doloroso quando a venda caiu de meu rosto. Mal pude enxergar diante de
tamanha claridade, com meus olhos já habituados à escuridão tranquilizadora! Doeu,
e muito. Eis o desequilíbrio que lhes havia mencionado antes, o primeiro que vi
no semblante de Fortunato. Vi-o em êxtase diante de Raflévia, que para aumentar
meu sofrimento, sentiu-se levitar diante de tão apresentável cavalheiro.
Anunciava-se, enfim, o lance maior. E para mim, não tivesse sido minha
obscuridade despertada com semelhante vigarista, o jogo já teria terminado. Mal
pudera sobreviver à brincadeira e teria de resgatar as forças e reassumir meu
papel de adversária e isso era muito mais que uma simples questão de orgulho ou
reafirmação pessoal – um guerreiro não vive sem honra! Pois bem, fiz o que fiz,
ou ao menos, tentei fazer de tudo para resgatá-la.
Desde aquele dia, as visitas da esposa do chefe passaram a se tornar cada vez
mais frequentes. Fazia questão de almoçar conosco e sua amabilidade superficial
tornava-a tão simpática, que quem a via de fora, não fosse seu trajar superior,
juraria que fazia parte de nossa equipe de trabalho. Porém, cedo ou tarde, eu
sabia que todas essas atenções se esgotariam e esse dia revelaria que, enfim, o
golpe teria tido início.
Não me enganei, infelizmente. Decorrido um mês (meu Deus, apenas um mês!), suas
visitas cessaram por completo. Fortunato cresceu irreversivelmente aos nossos
olhos e aos do chefe. Passou para uma sala separada e já o substituía nas
reuniões de negócio mais importantes. Parecia ter se esquecido de mim, mas
soubera que ele havia feito um levantamento de meus comentários com meus
colegas. Ah, Fortunato, tu me ensinaste o quanto as paredes ouviam!
Cuidadosamente, fiz diversos comentários, mas nenhum que me descobrissem meus
reais intentos! Os que ele soube, somente demonstravam uma extremada dedicação
e preocupação para com o seu sucesso. Tranquilizou-se, pois; enquanto eu o
observava tão discretamente, que nem o mais vivo jogador teria percebido meus
passos. Assim como ele, daria o bote, vencendo-o pelo cansaço! Talvez deveria
punir-me ao ter desviado-me do caminho correto. Mas a verdade é só uma, e a
verdade é que eu queria vingança! Queria resgatar não sei o quê que eu havia
perdido na noite em que ele pôs suas mãos em mim. Mesmo que pudesse ser uma
razão mentirosa, queria culpá-lo por ter revelado a mim mesma uma pessoa que
desconhecia. Queria culpá-lo, pois não podia admitir que essa dualidade entre o
bem e o mal sempre existira dentro de mim! Queria culpá-lo, pois, sim.
E assim como cão sem dono, fingi-me sua amiga, sugerindo que sempre estaria
ali, à sua espera, aguardando um mísero afago e uma perigosa proteção.
Fortunato parecia convencido de minha nova posição: fui, ao menos
aparentemente, uma pobre apaixonada que nunca teria perdido as esperanças de um
amor por completo com o príncipe encantado. Vaidade: esse foi o principal
motivo da suposta derrota final desse homem tão inescrupulosamente inteligente!
Em casa, tomava seu retrato em minhas mãos e tentava desvendar o mistério: onde
estaria o verdadeiro Fortunato? Seria ele, de fato, essa cobra voraz, capaz de
manipular todos à sua volta? Que Fortunato era esse, tão capaz de seduzir quem
quer que fosse? Eu era uma carta fora do seu baralho, mas foi de fora que
finalmente pude compreender melhor o seu jogo.
Comecei a investigá-lo exaustivamente. Apresentando três atestados, procurei me
ausentar exatamente nos dias em que ele comparecia a duvidáveis reuniões.
Seguia-o, de táxi, mas somente na terceira espionagem flagrei sua paixão
fulminante com a mulher do chefe, caso que não me surpreendeu absolutamente.
Vi-a deixar o carro no estacionamento do shopping para, depois, entrar no dele.
Beijaram-se compulsivamente antes de saírem dali, uma ousadia que logo seria
fotografada por mim. Três quilômetros depois, entravam num motel requintado,
ela sempre gesticulando e mexendo no cabelo. Tudo que me foi possível, foi
sofrivelmente registrado, graças ao descuido da paixão.
No escritório, minha investigação não foi menos exaustiva. Dirigia-me com frequência a sua sala, e com uma atenção apaixonada, perguntava-lhe se estava
tudo bem. Fortunato respondia vaidoso que não havia nada com que eu me
preocupasse, pois embora estivesse extremamente atarefado, tinha grande
experiência, e “com experiência, tudo se resolve, não é mesmo?” Não foi fácil
pegá-lo distraído. Minhas visitas a sua sala eram praticamente diárias, e para
mim já restavam poucos argumentos para ali estar. Mas todo jogador é falível. E
no seu primeiro descuido, quando teve que me deixar esperando para atender a
uma ligação reservada, desvendei finalmente seu plano ambicioso: havia alguns
papéis embaixo de um livro preto. Levantei-o discretamente e vi que se referia
a transferências de bens para o seu nome. Sobressaltada, retornei à minha mesa
com a cabeça fervendo. Então era isso: Raflévia e ele planejavam um grande
golpe.
Já em casa, olhava para as fotos que comprovavam o adultério e pensava no que
tramavam. Minha vingança (ou missão, como depois passei a chamar meu intento,
na tentativa de tranquilizar a consciência) estava prestes a se cumprir. Reuni
as provas, deitei-me, mas não pude dormir. Um bom observador sabe que nunca
deve subestimar o adversário. Em meu quarto, em meio a um devaneio, via
Fortunato caminhar em volta de minha cama, ameaçando-me com seu olhar de
carnívoro ferido. Reduzi-me o quanto pude, agora eu tinha consciência de minhas
fraquezas e, naquele momento, eu não passava de uma presa a estar paralisada no
mais terrível e angustiante medo. Fechava os olhos, para fugir daquela
aparição. Porém, aquela imagem aterrorizadora já invadia meus sonhos e
avançava, até tomar conta por completo da profundidade de minha alma.
A noite demorou a passar. Olhei-me no espelho e permaneci longos minutos ali,
tentando me reconhecer embaixo de exageradas olheiras. Quando percebi que não
mais encontraria minha face, não importando o tempo em que a procurasse, juntei
as provas, coloquei-as na bolsa, e corri, atrasada, ao escritório.
Suava frio, dividia-me entre a coragem e a covardia. Entrei arquejante no
elevador que, desta vez, abriria para uma porta desconhecida. Avancei para o
escritório e uma surpresa me estarreceu:
Deparei-me com Fortunato arrumando suas coisas, cabisbaixo e superficialmente
resignado, tranquilo. Logo vi que toda a calmaria era apenas o prenúncio da
desgraça. Perguntei às colegas do ocorrido e soube que o chefe descobrira uma
fraude de grandes valores no escritório. Confesso que respirei aliviada,
enquanto Fortunato, ferido e humilhado, preparava-se para sair de uma vez por
todas da nossa vida. Quando, enfim, guardou o livro preto dentro de sua mala,
olhou friamente através dos vidros para todos nós. Saiu, então, de sua sala,
aproximou-se, e fixou seus olhos em mim. Estremeci. Havia conhecido diversas
faces suas, contudo, aquela revelava muito mais que um perdedor – eram os olhos
de quem finalmente me reconhecia como uma jogadora à sua altura. Fugi daquele
olhar, pondo definitivamente um ponto final na guerra. O terrível jogo, para
mim, tinha terminado sem a minha influência. Mas Fortunato, infelizmente, não sabia
disso. E retirou-se com o mesmo silêncio calculado com que tinha entrado, pela
primeira vez, naquele local.
Depois da saída de Fortunato do escritório, a tranquilidade voltou a amenizar
os dias de trabalho excessivo. No início, o receio ainda prometia perturbar
todos nós, no entanto, o tempo cicatrizaria as consequências devastadoras da
tempestade medonha que havia varrido o ambiente. Nunca mais ouvimos ou
recebemos notícias do vilão. Graduei-me, enfim, em Administração, e depois de
sete anos de fiel dedicação, pedi demissão para trabalhar numa grande empresa
de cosméticos. Concorri com centenas de profissionais talentosos e não pude
acreditar quando soube que a vaga era minha.
Na primeira semana de trabalho, demonstraram-me todas as etapas – da produção
até a entrega dos produtos. Somente na segunda semana, realizariam uma reunião
na qual conheceria os superiores da minha área e tratariam de assuntos gerais
de administração. Fui a terceira a chegar, receosa, à sala de reuniões. Os
demais foram chegando minutos depois de mim, todos demonstrando generosidade
formal. Iam ocupando as cadeiras, observando a uma ordem hierárquica. À minha
frente, uma ainda estava vaga – pertencia ao diretor que ainda não havia
chegado, informaram-me logo. Fiz gesto de entendida com a cabeça e retirei a
agenda da bolsa. Foi nesse instante que entrou o diretor, altivo e com um
sorriso que iluminou toda a sala. Dei um grito de pavor, o que acabou por
chamar a atenção de todos – estava perplexa. Fortunato sentou-se, finalmente, à
minha frente, e com seu olhar sedento e vingativo, deu reinício ao jogo.
quarta-feira, 4 de junho de 2014
quarta-feira, 7 de maio de 2014
sexta-feira, 11 de abril de 2014
2014: FUTEBÓIS DA EXCLUSÃO
Se me
perguntarem o que acho a respeito da Copa no Brasil, direi, sem dúvida alguma,
que esse evento marcará uma nova era social em nosso país. Social? Exatamente,
e não é preciso ser um analista político para saber as razões disso.
Para explicar
por que acredito numa nova era social, farei uma analogia com o tempo em que
vivia em Gramado – a cidade do Cinema. Àquela época, eu contava com apenas 22
anos e havia me mudado para lá devido à minha profissão. Professora de Inglês
extremamente dedicada, havia passado semanas escrevendo o material didático que
os alunos fotocopiariam, tudo porque não tinham recursos financeiros para
adquirir o livro da matéria. Procurava ser o mais eficiente que eu podia. Meu
objetivo era levar àquele público o conhecimento básico da língua inglesa e
tinha bastante entusiasmo para isso.
Entretanto, durante
todas manhãs, não sentia que meus alunos estavam tão entusiasmados quanto eu.
Chegavam exaustos para os estudos, porque trabalhavam às tardes e às noites,
envolvidos com o turismo. Havia os que trabalhavam em sorveterias; outros, em
chocolatarias; alguns, em lojas de confecções em couro; muitos, em
restaurantes. A segunda-feira era o pior dia da semana, pois o cansaço do fim
de semana se tornava visível diante de todos.
“São apenas
adolescentes! Contudo, fazem a cidade de mover!”, pensava, solidária com aquela
labuta.
Então, o
Festival de Cinema teve início. Como aquele era o meu primeiro ano em Gramado, era
natural que eu estivesse cheia de expectativas. Certamente, poderia ver vários
artistas e participar de vários eventos, principalmente porque trabalhava no
maior colégio da cidade.
No entanto, a
euforia logo passou, deixando-me um aprendizado e tanto: havia lugar ao sol,
mas esse lugar era reservado apenas para alguns. O evento não estava sendo
feito para um grande público. Nem eu nem meus alunos podíamos participar do
festival. O Festival de Cinema funcionava, de fato, como um cinema, em que tudo
se passava na tela, somente na tela, enquanto nós, o público, apenas assistíamos
àquilo à certa distância, preferencialmente bem longe.
Compartilho a
minha frustração: em cinco anos de trabalho, vi o colégio estadual da cidade
ser convidado apenas para algumas meras exibições de filmes. Isso, claro,
somente quando não havia outro público de maior requinte. Servíamos apenas para
ocupar espaço, já que poltronas vazias transmitiriam uma imagem negativa do
evento.
Neste ano, a
Copa será realizada no Brasil. De igual forma, a maioria de nós ficará de fora
dos estádios, de fora dos hotéis de luxo onde estarão as seleções, de fora do
orçamento do governo federal, enfim, é a vida novamente reservando o que há de
melhor apenas para alguns.
Por outro
lado, há um quê de insatisfação no ar. Os movimentos de protesto indicam que a
sociedade está se organizando para demonstrar toda a frustração de estar sendo
constantemente excluída. A princípio, a dura realidade parece não ter mudado
nada. Continuamos trabalhando, e muito, em benefício de uma minoria. E para que
haja uma mudança efetiva, resta-nos continuar demonstrando (sempre
pacificamente) que, embora nos ignorem, continuamos aqui e já que estamos aqui,
também queremos nosso lugar!
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