Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

AMAR AMARGO



O pesadelo teve início quando ela compareceu na entrevista de emprego, candidatando-se à vaga de secretária. Senti uma dor na boca do estômago e um oscilar intenso bem debaixo dos meus pés, como se o edifício fosse sucumbir e eu não tivesse nada a que pudesse me agarrar e evitar uma terrível queda. Sim, tamanho foi o pressentimento que tive. Senti-o lá no íntimo de meu ser: aquela era uma mulher perigosa demais para trabalhar para o meu marido e não tive sequer coragem de ver nos olhos dele que reação estava tendo diante daquele espetáculo feminino.

Meus argumentos para dar preferência à outra candidata foram se esvaindo como as águas de um rio que sofre diante da seca. Nada adiantaria: ela tinha atributos suficientes para ser a nova secretária, atributos que, na verdade, excediam suas obrigações profissionais. E o pior: todos pensavam da mesma forma!

Certo dia, num evento de encerramento de semestre, a gerente que, aliás, era minha amiga íntima, aproximou-se de mim com dois coquetéis:

- Beba, Jane, mas não beba muito. Melhor manter os olhos bem atentos e não acredito que estando bêbada, você consiga fazer isso.

- Sua insinuação me incomoda, Claire.

- Não é com a minha insinuação que você deve se preocupar, Jane. Olha só! – proferia ela, indicando discretamente com os olhos a aproximação entre meu marido e a secretária, que já não mais faziam questão de esconder um caso.

- Claire, você jamais se casou e não sabe como é ter um relacionamento duradouro com homem algum! – disse-lhe, tentando magoá-la. Uma atitude mesquinha da minha parte, eu estava me vingando da pessoa errada. Logo arrependi-me e tentei me desculpar.

- Tudo bem, Jane, tudo bem! Deve ser doloroso para você, só que esse tipo de situação me faz ver vantagens infinitas de não ter tido relacionamentos sérios!

- Eu sei, Claire, eu sei. Mas sabe de uma coisa? Essa secretária, a Aline, é vaidosa demais. Nos últimos meses, deve ter trocado todo o guarda-roupa.

- É claro, não é, Jane? Tudo com o dinheiro do SEU marido, repito: do SEU marido!

Baixei a cabeça, um pouco zonza com as palavras diretas de minha amiga. Eu já sabia de tudo, mas, ainda assim, doía e era um tanto desnecessário ouvir o óbvio de outra pessoa.

- Não terminei meu raciocínio, Claire, por favor – solicitei, bebericando meu coquetel sem tirar os olhos de Aline. – Aline é vaidosa, como você mesma pode perceber, e deve se sentir nas nuvens quando está ao lado de meu marido. Por que está apaixonada? Não, decididamente não, embora não saiba disso. O que a atrai nele são os olhares dos outros. Sim, dos outros. Ela se sente em êxtase quando passeiam de mãos dadas, chamando a atenção de várias pessoas, intrigadas com tamanha diferença de idade. É como se isso lhe regozijasse a vaidade, entende? Ela gosta do que os outros devem pensar sobre o casal irreverente que eles formam: enquanto um pensa “Uma gostosona como essas com um velho?”, o outro deve pensar “Esse cara deve estar cheio da grana”, e isso faz bem para o ego de Aline.

- Jane, ouvindo-lhe falar assim, não entendo como você consegue continuar nessa situação! Sempre soube o quanto você é racional e nunca sentimental, no entanto, tanta racionalidade me assusta um pouco, sabia? Isso não lhe dói?

- Dói, claro que dói. Mas falo do ponto de vista de Aline, não do meu, e isso me ajuda a não desabar de uma vez por todas. Bem, prosseguindo, é a vaidade que nutre esse caso entre os dois amantes. Há dois obstáculos, porém, capazes de fazer ruir em mil destroços o relacionamento dos dois.

- Posso adivinhar? Um, pelo menos?

- Vá em frente!

- A beleza dela não vai durar para sempre e quando seu marido perceber que ela também está envelhecendo, vai perder o tesão?

- Talvez, embora isso leve muito tempo. Aline é jovem demais e pode conservar sua beleza por mais duas décadas! Até lá, meu marido estará com mais de 75 anos e espero que esse relacionamento não dure tanto assim.

- Bem, então, que obstáculos são esses? – perguntou Claire, sem entender aonde eu pretendia chegar.

- Claire, se você a analisasse de perto, saberia que existe um germe nessa garota que a impedirá de prosseguir numa situação inconstante como essa. 

- Germe? Jane, você não está bebendo muito, está?

É claro que eu estava. Já havia tomado três coquetéis e estava com o estômago vazio. Ainda assim, meu raciocínio era perfeito e eu tinha que compartilhá-lo com minha amiga.

- Germe, sim. Essa garota, em seu íntimo, possui alguns valores familiares bem consistentes. Percebi isso algumas raras vezes, quando comprime os lábios ou quando pisca lentamente. Quando a vaidade esmorece, os valores morais a atormentam e ela se culpa por se relacionar com um homem casado.

- Como você pode saber disso, Jane? Num comprimir de lábios? Num piscar lento? Ora, sua racionalidade está em xeque depois dessa!

- Sim, Claire, é isso mesmo. Bem, o outro obstáculo é um filho. Quero dizer, um dia ela vai querer ter um filho, e João Carlos não poderá realizar esse desejo, como nós duas bem sabemos.

- Valores familiares e um filho? Não sei se concordo com você, Jane! Seu marido pode chegar ao ponto de pedir o divórcio, você já pensou nisso? Então, o primeiro obstáculo, ou seja, os valores familiares que a atormentam pelo fato de ela ter um caso com um homem casado não serão mais problema!

Sim, Claire podia estar certa. Se José Augusto decidisse se separar e assumir o caso diante de todos, esse obstáculo seria vencido. Duvidava que ele fosse capaz disso, contudo, essa possibilidade existia.

- E depois... um filho? Hoje em dia, há tantas mulheres que optam por não ter filhos! Eu, por exemplo, sou solteira e estéril por convicção! De qualquer forma, eles podem querer adotar uma criança, não é?

Sim, novamente Claire podia estar certa. Podia, mas algo dentro de mim me dizia que ela não estava.

De todo modo, só o tempo revelaria as respostas que eu ansiava por saber. Queria estar certa: na minha cabeça, Aline se atormentaria tanto com a culpa por se envolver com um homem casado, que começaria a pressioná-lo a divorciar-se. José Augusto, descontente com a pressão, deixaria claro quem estava no comando: ele, e não uma simples secretária! Os dois discutiriam e, em seguida, fariam as pazes. Contudo, as brigas se tornariam cada vez mais constantes. Talvez Aline passasse a ameaçá-lo e eu teria uma vantagem enorme diante desse passo em falso da rival. José Augusto passaria a vê-la como uma vilã que queria destruir seu casamento, enquanto eu, que nunca sequer mencionara sua traição, passaria a ser vista como alguém a ser protegida pelo marido. Finalmente, eu voltaria a ser percebida por José Augusto, que, quem sabe, até voltasse a se apaixonar por mim!

O enredo estava escrito, eu o lia em minha mente toda vez que José Augusto chegava tarde em casa e me tratava com desinteresse. Eu precisava manter-me firme e morder a língua quando esta se mostrava prestes a pôr tudo a perder. Eu aguardava ansiosamente pelo desfecho da história, embora os dias penosos demorassem a passar.

De fato, demorou bastante, não dias nem meses, como eu tanto desejava, e sim, praticamente uma década! Passaram exatamente nove anos, dois meses e quatro dias até José Augusto chegar com um semblante irreconhecível em casa. Eu sabia exatamente o que havia acontecido, ou melhor, achava que sabia. Mas havia algo estranho no ar, algo que eu, que sempre previa e compreendia tudo, não conseguia decifrar.

Minha curiosidade e ansiedade foram ao auge quando ele decidiu se refugiar no escritório. Então era isso? Tantos anos à espera do desfecho de um maldito relacionamento com a secretária, e ele se enclausura no escritório? Nenhuma palavra! Nada! Apenas um olhar de morto-vivo, como se tivesse perdido alguma coisa de si mesmo? O ciúmes tomou conta de mim, entretanto, eu continuava tentando me controlar, afinal, a tão esperada hora chegara. Dali em diante, eu tinha certeza de que não mais teria que dividi-lo com mais ninguém.

Sentei-me no sofá com um copo cheio de Martini, sem gelo. Liguei a televisão e suspirei profundamente umas cinco vezes para recobrar a calma e o controle. Em vão. Quando o jornal das nove noticiou o assassinato de Aline, sobressaltei-me. Céus! Assassinada? Será que foi José Augusto? Mas logo em seguida, meu coração se aliviava: um namorado ciumento fora preso em flagrante. Namorado? Não sabia que Aline tinha um namorado! Talvez nem José Augusto soubesse!

Abri a porta do escritório e o vi derramando algumas lágrimas discretas. Não tive dúvida. Não havia mais o que fazer naquela casa. O desfecho era aquele e pude acompanhar toda a história como testemunha. De fato, parecia que eu não fazia parte daquela trama. Arrumei minhas malas e decidi partir.

Quando estava tocando na maçaneta da porta, José Augusto surgiu, flagrando minha partida. Olhou-me como se estivesse me questionando: quando eu preciso de você, você vai embora?

- Sim – falei, mesmo que a pergunta não tivesse saído dos lábios dele. – Sou capaz de tudo, menos disputar com uma pessoa morta.

E fechei a porta.

A noite estava quente e decidi dirigir com os vidros do carro abertos, contrariando os riscos de andar assim pelas ruas de Copacabana. Um vento fresco bateu no meu rosto e eu voltei a me sentir viva, depois de quase uma década!

Abandoná-lo naquela hora difícil era uma vingança? Eu estava fazendo aquilo para que José Augusto perdesse numa única vez as duas mulheres da vida dele? Não, eu apenas havia acordado quase na mesma hora em que Aline dormira. Não era vingança. Eu preferia chamar de coincidência. Você não chamaria assim?

 

 

 

 

 

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