Papéis avulsos espalhados na mesa. Calculadora e notebook lado a lado. Ligações, quantas ligações! Extratos bancários, quantos extratos bancários! Unidos por sete notas de cem dólares na carteira francesa, semiescondida no paletó de terça-feira. Sufoco amenizado pela sala climatizada, há dois anos pensada e reformada, status que nem todos que merecem têm. E o cheiro... cheiro de poltrona nova, de móveis novos, de caneta importada, afinal, que cheiro esse tipo de coisa tem? E a janela, sem enseada, mas com a visão de homens embutidos em sapatos, calça jeans e camisa entreaberta, cheirando à poeira de asfalto quente ou à fritura de lanchonete. Quantas vezes aquela janela não o fez perder um bom negócio! Funcionários cabisbaixos feito gente, principalmente quando avistavam o chegar obstinado e rápido do chefe – quanta prepotência, meu Deus, têm eles agindo assim, pedintes e não colaboradores!
Mas nem sempre seu dia era assim. Às vezes um cheiro de capim molhado se misturava aos seus papéis. Atenda o telefone, Poe, concentre-se – e essas palavras ditadas pelo pensamento lhe ressoavam em volta do pescoço, recolhendo o orvalho daquele capim fresco. Era preciso concentração, concentração e avaliação. Tudo para que o velho pai se orgulhasse dele naquele plano distante chamado memória, ou invenção.
À noite, o jantar e o jornal; o jornal e a internet; a internet e o banho; o banho; o boa-noite distante de Marialice e o dormir chacoalhado pelos sonhos. Mas que tipo de sonho? Era o bom pai e o curral dos fundos de casa. E a mãe, brinca comigo, mamãe, brinca comigo! Mas era a mãe embriagada com os contos ovalados e amontillados. A chuva, como chovia! O ar refinado de leite fervido e doce de maisena. As frestas. O frio luxuoso de luar de lua cheia. O frio. O frio, a fome, e a ternura. Brinca comigo, vira-lata, brinca comigo. O vira-lata não tinha olhos azuis.
Mas um negócio importante deveria ser fechado. Liga para o diretor-geral do Uruguai, panaca, liga logo! Mande-lhe um e-mail, vamos, incompetente, mande um e-mail. Era difícil trabalhar com quem tinha sido ele um dia. Escreve que aceitaremos a proposta, vamos, escreve. O orçamento, abre o Word, verifique o orçamento. E essa planta? Quem colocou essa planta aí? Isso é flor? Como, se tem cheiro de capim, capim e estábulo? Tire-a daqui, incompetentes nauseabundos!
Entretanto, era à noite que o capim molhado ressurgia da noite rubra, rubra, mas de vidro. Feito flor, flor de vidro. Paredes claras, pinturas famosas ininteligíveis, mobília clássica e caríssima, mesa retangular - preciosíssima, poltrona macia e importada, macia e vazia. Marialice. Ela e os dois filhos. Joga bola comigo, papai, joga bola. Não posso, não tá vendo que tenho que tirá o leite das vaca, moleque! Como era bom aquele bolo coberto de açúcar! Mas o que é isso, mulhé, papel assado dentro do bolo? Minha mãe era um forno de livros velhos. Leia uma história, mamãe, leia uma história. Mas ela cultivava mais e mais as suas ostras. E o passado vinha... e vinha forte, como chuva de tempestade, vendaval em clareira. Me dá dinheiro, papai, me dá dinheiro para comprar aquele autorama, todos os meus colegas já têm.
O negócio foi fechado com sucesso. Lucros e lucros. Débitos e créditos. Uma maravilha! Poupança e investimentos recheados. Você tem que ser alguma coisa na vida, moleque, só pensa em vadiar. Quando tinha sua idade... Quero pôr uma cortina nesta janela, chega dessa visão de gente pobre, pobre e suada, cheirando à gordura. Entenderam? Uma cortina escura. Por que deixaram essa janela aberta? Sabem que não gosto de janela aberta! Afonso, feche a janela agora. Vamos, não seja preguiçoso. No banco, uma conta recheada.
A estante de casa não continha nenhuma poeira. As empregadas se incumbiam da tarefa de fazer a prata brilhar, o espelho refletir, o chão reluzir. Mas e o porta-retrato? Ninguém percebeu que o porta-retrato da família está empoeirado, estúpidos? Que portarretrato raro, raríssimo. Comprara numa viagem a Londres, junto com Marialice. É lindo, Poe, é finíssimo! E tão delicado, é nele que toda sua família será guardada. Agora vamos almoçar, estou morta de fome, as crianças preferem hambúrguer. Beije-me, Marialice, beije-me. Que cabelos ondulados e ruivos. Ruivos e macios. Longos, cabelos de esposa jovem. Por que ninguém tirou o pó do porta-retratos? Paguei uma nota, incompetentes.
Marialice parecia os livros velhos de sua falecida mãe. Mantinha-a também como um troféu que relembra um passado de bons tempos. Gloriosa, mas velha, e amarelada como aquelas antigas folhas que a custo não se desprendiam, resistindo a traças e às rápidas horas do tempo. Marialice, já falei que não posso, tenho que trabalhar. Tome essas passagens. Você julga que não a amo, pois então vá a Paris. Trate de se consolar. Marialice no avião. Marialice e os dois filhos. Tchau, papai, tchau. Na estante, esqueceu o livro de Machado de Assis.
Finalmente sozinho. Já planejava o quanto poderia progredir nos negócios. Telefonar para Argentina, fechar negócios no Chile, fazer, por fim, a reunião para aplicar aquele novo software. Cortinas escuras e janela fechada. Sala climatizada, há dois anos pensada e reformada, status que nem todos que merecem têm. E o cheiro... cheiro de poltrona nova, de móveis novos, de caneta importada, afinal, que cheiro esse tipo de coisa tem? E a parede sem janela, enfim, sem janela e sem a visão daqueles homens antepassados seus. Passado é passado e as ligações lucros têm. Mas não, já falei que se Marialice ligasse, vocês deveriam dizer que estou ocupado, ocupadíssimo! Será que ninguém entende uma ordem minha?
O final do dia, o início da noite – eis que um grande mistério tem. Paredes e móveis iguais. Família longe, mas aquele cheiro... Que cheiro forte de capim molhado! Que produto passaram para limpar a casa hoje? E quanto ao portarretrato? Não acredito! Quem trincou o portarretrato de prata? Falei para limpá-lo, não rachá-lo, estúpidos! A mão deslizando sobre o objeto valioso. Detalhe por detalhe, num designer de luxo. Por que você não tem mais cabelos longos, Marialice? Por que não tem? Mesmo assim ainda tinha uma certa beleza, beleza de livro velho, amarelado, mas ainda assim tinha uma certa beleza. Beleza de folha amassada, cheirando à antiguidade, e requerendo cuidados, cuidados em folhá-la.
Acordou com uma nova expectativa. Fez a barba, pôs a gravata nova. Perfumou-se e decidiu que arrancaria as cortinas escuras de seu ambiente de trabalho, mas não queria saber da flor com cheiro de capim de novo. Continuaria fazendo negócios e negócios. Que a luz entrasse e iluminasse seus papéis e seu notebook. Os vidros permaneceriam fechados e o cheiro de ranço continuaria fora. Mas o sol, esse entraria pelos quatro cantos. Como a luz do sol anima um homem! Telefonema? De onde? Paris. Certo, pode passar.
Nem a luz do sol ou de lustres de vidro iluminaria sua casa. A estante de casa não continha nenhuma poeira. As empregadas se incumbiam da tarefa de fazer a prata brilhar, o espelho refletir, o chão reluzir. Mas e o retrato? Esse é o mesmo retrato? Sem rachaduras, sem poeira, é esse o retrato? Beije-me, Marialice, beije-me. Brinque comigo, papai, brinque. Por que seus cabelos não são mais longos, Marialice, por quê? Foi a primeira vez que não olhou para o portarretrato.
Autoria de:
Cristiane Krumenauer
Publicado pelo Programa de Pós-Graduação da PUCRS - 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário