Em todo lugar, o inexplicável, o insondável, o mistério do impalpável estava presente. Não entendia muito bem quando meus pais pediam para que eu juntasse as mãos e conversasse com um Senhor de certa idade, que morava numa província longínqua. Eles diziam para eu agradecer pelo meu dia e dirigir meus pedidos a Ele. Então, assim eu fazia todas as noites antes de adormecer, mas nunca O ouvi, tampouco O vi.
Nos finais de semana, o ritual era um pouco diferente: meus pais ora se sentavam ora ficavam em pé, a ouvir um homem com uma batina falando das maravilhas de Deus. Incompreendia aquela cena, então ficava pulando de um a outro entre as dezenas de bancos que ali eram postos, enfileirados como nos ônibus da capital paulista. Algumas pessoas da missa se desconcentravam com meus passeios nos ônibus, e logo meus pais assinalavam o término de minha viagem, segurando-me firme ao lado, pedindo-me para prestar atenção no senhor da batina.
Em casa, o cenário não mudava muito. Na parede de meu quarto, um adesivo enorme com a figura de meu anjo da guarda demonstrava a crença de meus pais. Lembro-me bem de minha mãe ensinando-me a oração para meu anjo. Até hoje a sei, creio que mesmo não a usando não a esquecerei.
Foi nesse ambiente que fui criada. Havia sempre o invisível a influenciar poderosamente a realidade. Não que eu não fosse prática, mas às vezes valia à pena acreditar em outras possibilidades. Decidi seguir a orientação de fé de meus pais: “Anjinho da Guarda, eu lhe imploro: faz o Carlinhos ficar comigo”. Como no dia seguinte nada sucedeu, pedi novamente: “Anjinho da Guarda, eu lhe imploro: faz o Carlinhos me dar um beijo”!
Para minha surpresa, O Carlinhos beijou... beijou minha colega de sala, o que me fez duvidar do verdadeiro poder de meu anjo. Desisti de conversar com meu protetor e, rebelde, cobri o adesivo de meu quarto com um imenso pôster do Cold Play.
Na semana seguinte, minha mãe apareceu com uma grande novidade: estava grávida, aos 45 anos de idade. Ficamos todos maravilhados – um bebê em uma casa é sempre divertido. Porém, no quarto mês, a bolsa estourou. O receio invadiu nossas vidas, e eu nem me lembrava mais do Carlinhos. A situação piorava, era necessário monitorar constantemente o bebê e permanecer em repouso absoluto.
No auge do desespero, encerrei-me no meu quarto e arranquei o pôster que cobria meu protetor: “Olha, você me deixou na mão uma vez, mas agora peço-lhe de verdade: diz para o Papai do Céu salvar meu irmãozinho”!
Ninguém nem o obstetra souberam explicar como a bolsa estancara sem nenhuma intervenção médica. Meu irmão nasceu perfeitamente e recebeu o nome de Miguel, o mesmo do Arcanjo São Miguel. Quanto ao Carlinhos, traiu minha colega com outra menina, também da minha sala. Às vezes me perguntam se acredito em anjos. Digo que nunca os vi nem os ouvi, mas que fazem muita coisa acontecer, disso não tenho dúvidas.