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quarta-feira, 5 de março de 2014

O CARNAVAL





        Milhares de foliões se reuniam em todas as partes do Rio de Janeiro. Como sempre ocorria todos os anos, o carnaval não era sinônimo de feriado, de diversão ou de descanso para seu Carlos e os colegas. Ao contrário, esse era um dos períodos em que mais trabalhavam. Seu Carlos, homem de cinquenta anos aparentando ser muito mais velho do que realmente era, despertava às 4 horas da manhã, trajava seu uniforme surrado – chapéu, camiseta e calças cor-de-laranja, um sapato preto para contrastar – e ia direto para o ponto de ônibus. Às 5 horas, o coordenador distribuía os locais a serem varridos e lá iam, ele e os demais garis, num compasso alaranjado, com a expectativa de serem mais fortes do que o sol quente de verão.
A cena era sempre a mesma: o dia posterior ao carnaval era um verdadeiro pesadelo. Seu Carlos varria as centenas de milhares de latas de cerveja que desconheciam o lugar certo onde deveriam ter caído – no lixo. Varria também papeis, restos de comida, garrafas e até retalhos de fantasias. Enquanto varria todos aqueles restos, seu Carlos se lembrou do primeiro carnaval que passara sendo um gari. A esposa, impaciente, queria sambar e o marido não a acompanharia. As filhas, aflitas, sambariam sem nenhum traje adequado, porque não tinham dinheiro para a fantasia. Foi então que o pai voltou para casa, trazendo uma imensa fantasia que achara enquanto limpava os desperdícios da humanidade. Houve gritos de êxtase e alegria, as filhas colocando a roupa e mirando-se no espelho, encantadas com o presente do pai. Como havia apenas um traje, elas se revezariam: a primeira noite seria da mais velha.
Seu Carlos levou a mão à testa, enxugando o suor que teimava a escorrer em seus olhos, provocando uma ardência que se transformava em lágrimas, e logo voltava a varrer. Era um homem repleto de lembranças. E como não ser? Se cada varrida nas latas de cerveja e nos resíduos esquecidos era como se varresse as memórias de cada folião que passara por aquele local na noite anterior? Seu Carlos, então, sentia-se como o responsável por limpar toda a sujeira da cidade e, fazendo isso, também estaria limpando todas as más lembranças do carnaval, inclusive as suas próprias.
Por que se sentia assim? Qualquer um em seu lugar entenderia. A filha mais velha, na primeira noite de carnaval, foi quem trajou a fantasia. Maquiou o corpo todo com glitter e mostrou o resultado ao pai:
- Você parece uma princesa, Selene!
Depois saiu com as amigas, cantando eufóricas, descendo as escadarias do morro, embora os relâmpagos prometessem uma forte tempestade.
- É só chuva de verão – falou a mãe, despreocupada.
O céu desabou naquela noite sombria e Selene, nem no dia seguinte, nem nunca mais, voltou a aparecer. Seu Carlos agora sentiu um tecido prender-se na vassoura, impedindo-o de prosseguir com seu trabalho. Abaixou-se e o removeu com cuidado para não rasgá-lo. Trava-se de um tecido de seda. Por coincidência, tinha as mesmas cores da fantasia que Selene havia usado na noite em que desaparecera. Por um momento, levantou-se e olhou ao seu redor, na esperança de reencontrá-la. Nada. Aquilo já era passado, um passado que algum gari, assim como ele, já deveria ter varrido para longe de seus olhos e de sua vida.
Ao meio-dia, quando seu Carlos se juntava aos demais colegas para o almoço e, posteriormente, para uma soneca em meio à praça, uma reunião foi feita. Seu Carlos mal ouvia Juvenal, o líder do grupo, falando. O que pôde entender era a respeito de fazerem uma paralisação ou greve, coisa assim. Como não compreendeu, retornou ao trabalho depois do cochilo de 15 minutos, mesmo não avistando mais colega de trabalho nenhum.
Seu Carlos olhou para a imensidão de lixo e sujeira espalhada pelas ruas por causa da greve dos garis. Não queria ir para casa, ver os olhos da mulher a incriminá-lo por ter levado a maldita fantasia para as filhas, e, resignado, pôs-se a varrer. Varria com intensidade, queria remover todas as lembranças terríveis deixadas para trás numa lata de cerveja, num pedaço de tecido, num objeto qualquer.
Varria e varria, pois varrendo, seu Carlos acreditava que poderia limpar toda a sujeira da humanidade.

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