Atrás do Crime - conquistando os leitores do Brasil

Atrás do Crime - book trailer

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

AMAR AMARGO



O pesadelo teve início quando ela compareceu na entrevista de emprego, candidatando-se à vaga de secretária. Senti uma dor na boca do estômago e um oscilar intenso bem debaixo dos meus pés, como se o edifício fosse sucumbir e eu não tivesse nada a que pudesse me agarrar e evitar uma terrível queda. Sim, tamanho foi o pressentimento que tive. Senti-o lá no íntimo de meu ser: aquela era uma mulher perigosa demais para trabalhar para o meu marido e não tive sequer coragem de ver nos olhos dele que reação estava tendo diante daquele espetáculo feminino.

Meus argumentos para dar preferência à outra candidata foram se esvaindo como as águas de um rio que sofre diante da seca. Nada adiantaria: ela tinha atributos suficientes para ser a nova secretária, atributos que, na verdade, excediam suas obrigações profissionais. E o pior: todos pensavam da mesma forma!

Certo dia, num evento de encerramento de semestre, a gerente que, aliás, era minha amiga íntima, aproximou-se de mim com dois coquetéis:

- Beba, Jane, mas não beba muito. Melhor manter os olhos bem atentos e não acredito que estando bêbada, você consiga fazer isso.

- Sua insinuação me incomoda, Claire.

- Não é com a minha insinuação que você deve se preocupar, Jane. Olha só! – proferia ela, indicando discretamente com os olhos a aproximação entre meu marido e a secretária, que já não mais faziam questão de esconder um caso.

- Claire, você jamais se casou e não sabe como é ter um relacionamento duradouro com homem algum! – disse-lhe, tentando magoá-la. Uma atitude mesquinha da minha parte, eu estava me vingando da pessoa errada. Logo arrependi-me e tentei me desculpar.

- Tudo bem, Jane, tudo bem! Deve ser doloroso para você, só que esse tipo de situação me faz ver vantagens infinitas de não ter tido relacionamentos sérios!

- Eu sei, Claire, eu sei. Mas sabe de uma coisa? Essa secretária, a Aline, é vaidosa demais. Nos últimos meses, deve ter trocado todo o guarda-roupa.

- É claro, não é, Jane? Tudo com o dinheiro do SEU marido, repito: do SEU marido!

Baixei a cabeça, um pouco zonza com as palavras diretas de minha amiga. Eu já sabia de tudo, mas, ainda assim, doía e era um tanto desnecessário ouvir o óbvio de outra pessoa.

- Não terminei meu raciocínio, Claire, por favor – solicitei, bebericando meu coquetel sem tirar os olhos de Aline. – Aline é vaidosa, como você mesma pode perceber, e deve se sentir nas nuvens quando está ao lado de meu marido. Por que está apaixonada? Não, decididamente não, embora não saiba disso. O que a atrai nele são os olhares dos outros. Sim, dos outros. Ela se sente em êxtase quando passeiam de mãos dadas, chamando a atenção de várias pessoas, intrigadas com tamanha diferença de idade. É como se isso lhe regozijasse a vaidade, entende? Ela gosta do que os outros devem pensar sobre o casal irreverente que eles formam: enquanto um pensa “Uma gostosona como essas com um velho?”, o outro deve pensar “Esse cara deve estar cheio da grana”, e isso faz bem para o ego de Aline.

- Jane, ouvindo-lhe falar assim, não entendo como você consegue continuar nessa situação! Sempre soube o quanto você é racional e nunca sentimental, no entanto, tanta racionalidade me assusta um pouco, sabia? Isso não lhe dói?

- Dói, claro que dói. Mas falo do ponto de vista de Aline, não do meu, e isso me ajuda a não desabar de uma vez por todas. Bem, prosseguindo, é a vaidade que nutre esse caso entre os dois amantes. Há dois obstáculos, porém, capazes de fazer ruir em mil destroços o relacionamento dos dois.

- Posso adivinhar? Um, pelo menos?

- Vá em frente!

- A beleza dela não vai durar para sempre e quando seu marido perceber que ela também está envelhecendo, vai perder o tesão?

- Talvez, embora isso leve muito tempo. Aline é jovem demais e pode conservar sua beleza por mais duas décadas! Até lá, meu marido estará com mais de 75 anos e espero que esse relacionamento não dure tanto assim.

- Bem, então, que obstáculos são esses? – perguntou Claire, sem entender aonde eu pretendia chegar.

- Claire, se você a analisasse de perto, saberia que existe um germe nessa garota que a impedirá de prosseguir numa situação inconstante como essa. 

- Germe? Jane, você não está bebendo muito, está?

É claro que eu estava. Já havia tomado três coquetéis e estava com o estômago vazio. Ainda assim, meu raciocínio era perfeito e eu tinha que compartilhá-lo com minha amiga.

- Germe, sim. Essa garota, em seu íntimo, possui alguns valores familiares bem consistentes. Percebi isso algumas raras vezes, quando comprime os lábios ou quando pisca lentamente. Quando a vaidade esmorece, os valores morais a atormentam e ela se culpa por se relacionar com um homem casado.

- Como você pode saber disso, Jane? Num comprimir de lábios? Num piscar lento? Ora, sua racionalidade está em xeque depois dessa!

- Sim, Claire, é isso mesmo. Bem, o outro obstáculo é um filho. Quero dizer, um dia ela vai querer ter um filho, e João Carlos não poderá realizar esse desejo, como nós duas bem sabemos.

- Valores familiares e um filho? Não sei se concordo com você, Jane! Seu marido pode chegar ao ponto de pedir o divórcio, você já pensou nisso? Então, o primeiro obstáculo, ou seja, os valores familiares que a atormentam pelo fato de ela ter um caso com um homem casado não serão mais problema!

Sim, Claire podia estar certa. Se José Augusto decidisse se separar e assumir o caso diante de todos, esse obstáculo seria vencido. Duvidava que ele fosse capaz disso, contudo, essa possibilidade existia.

- E depois... um filho? Hoje em dia, há tantas mulheres que optam por não ter filhos! Eu, por exemplo, sou solteira e estéril por convicção! De qualquer forma, eles podem querer adotar uma criança, não é?

Sim, novamente Claire podia estar certa. Podia, mas algo dentro de mim me dizia que ela não estava.

De todo modo, só o tempo revelaria as respostas que eu ansiava por saber. Queria estar certa: na minha cabeça, Aline se atormentaria tanto com a culpa por se envolver com um homem casado, que começaria a pressioná-lo a divorciar-se. José Augusto, descontente com a pressão, deixaria claro quem estava no comando: ele, e não uma simples secretária! Os dois discutiriam e, em seguida, fariam as pazes. Contudo, as brigas se tornariam cada vez mais constantes. Talvez Aline passasse a ameaçá-lo e eu teria uma vantagem enorme diante desse passo em falso da rival. José Augusto passaria a vê-la como uma vilã que queria destruir seu casamento, enquanto eu, que nunca sequer mencionara sua traição, passaria a ser vista como alguém a ser protegida pelo marido. Finalmente, eu voltaria a ser percebida por José Augusto, que, quem sabe, até voltasse a se apaixonar por mim!

O enredo estava escrito, eu o lia em minha mente toda vez que José Augusto chegava tarde em casa e me tratava com desinteresse. Eu precisava manter-me firme e morder a língua quando esta se mostrava prestes a pôr tudo a perder. Eu aguardava ansiosamente pelo desfecho da história, embora os dias penosos demorassem a passar.

De fato, demorou bastante, não dias nem meses, como eu tanto desejava, e sim, praticamente uma década! Passaram exatamente nove anos, dois meses e quatro dias até José Augusto chegar com um semblante irreconhecível em casa. Eu sabia exatamente o que havia acontecido, ou melhor, achava que sabia. Mas havia algo estranho no ar, algo que eu, que sempre previa e compreendia tudo, não conseguia decifrar.

Minha curiosidade e ansiedade foram ao auge quando ele decidiu se refugiar no escritório. Então era isso? Tantos anos à espera do desfecho de um maldito relacionamento com a secretária, e ele se enclausura no escritório? Nenhuma palavra! Nada! Apenas um olhar de morto-vivo, como se tivesse perdido alguma coisa de si mesmo? O ciúmes tomou conta de mim, entretanto, eu continuava tentando me controlar, afinal, a tão esperada hora chegara. Dali em diante, eu tinha certeza de que não mais teria que dividi-lo com mais ninguém.

Sentei-me no sofá com um copo cheio de Martini, sem gelo. Liguei a televisão e suspirei profundamente umas cinco vezes para recobrar a calma e o controle. Em vão. Quando o jornal das nove noticiou o assassinato de Aline, sobressaltei-me. Céus! Assassinada? Será que foi José Augusto? Mas logo em seguida, meu coração se aliviava: um namorado ciumento fora preso em flagrante. Namorado? Não sabia que Aline tinha um namorado! Talvez nem José Augusto soubesse!

Abri a porta do escritório e o vi derramando algumas lágrimas discretas. Não tive dúvida. Não havia mais o que fazer naquela casa. O desfecho era aquele e pude acompanhar toda a história como testemunha. De fato, parecia que eu não fazia parte daquela trama. Arrumei minhas malas e decidi partir.

Quando estava tocando na maçaneta da porta, José Augusto surgiu, flagrando minha partida. Olhou-me como se estivesse me questionando: quando eu preciso de você, você vai embora?

- Sim – falei, mesmo que a pergunta não tivesse saído dos lábios dele. – Sou capaz de tudo, menos disputar com uma pessoa morta.

E fechei a porta.

A noite estava quente e decidi dirigir com os vidros do carro abertos, contrariando os riscos de andar assim pelas ruas de Copacabana. Um vento fresco bateu no meu rosto e eu voltei a me sentir viva, depois de quase uma década!

Abandoná-lo naquela hora difícil era uma vingança? Eu estava fazendo aquilo para que José Augusto perdesse numa única vez as duas mulheres da vida dele? Não, eu apenas havia acordado quase na mesma hora em que Aline dormira. Não era vingança. Eu preferia chamar de coincidência. Você não chamaria assim?

 

 

 

 

 

quarta-feira, 25 de junho de 2014

A VÍTIMA ERRADA




    Gosto de observar os seres humanos ou desumanos à minha volta, e faço isso desde a infância. Nesse caso, as mulheres são meu principal foco de atenção, pois parecem muito mais misteriosas e com segredos a esconder. Andam sempre pensativas e, como eu, são observadoras e avaliadoras natas. Suas vidas vão muito além das calculadoras e papéis burocráticos manipulados diariamente; dizem isso mas pretendem falar aquilo; agem de um jeito, entretanto, sua verdadeira essência é outra...


    Pois bem, também sou mulher, e talvez por isso, contradigo-me, pois o ser de minha atenção não tem o mesmo sexo que eu. E aquele que for tão observador quanto a mim saberá os motivos de ter escolhido um homem como foco. Atrapalho-me, valendo-me de detetive de um ser estranho às subjetividades e melindrosidades femininas, porém, não corro o risco de ser confundida, e mesmo de me confundir com a personagem, sendo essa do sexo oposto. Além disso, tal criatura por si só justificar-se-á, e as razões disso são muito complexas para serem traduzidas em palavras.


    Falo-lhes de um homem quase normal: desses que podem até escutar os boatos do trabalho, mas sem incrementar as fofocas com uma só palavra. Parece ser bastante dinâmico, e quando decide, por fim, comentar algo, é para regozijar-se de superioridade e sedução.


    Não é maldade, é acontecimento puro e concreto (mulher pode falar “concreto”?). Bem, estava eu a folhar as revistas de venda de cosméticos (uma terapia encantadora!), quando entrou Fortunato (nome comum, mas que atendia aos seus despropósitos), falando baixo como de costume, e deixando transparecer seu jogo moral. Homem atraente aquele! Seu negócio não era filosofar a respeito de economia ou de situação mundial, nem mesmo ousava proferir palavras de exaltação às fêmeas para as conquistar. Sua atenção era outra... e nós, mulheres, sabíamos disso; e foi exatamente isso que nos fez disputá-lo... até a morte. Tais palavras podem gerar equívocos, portanto, peço-lhes que não se precipitem. Não julguem isso ou aquilo, apenas aguardem, e tudo se esclarecerá!


    Fortunato, como vinha dizendo, era bonito, o único, inclusive, merecedor de atenções no escritório. Subia e descia as escadarias com um sorriso que iluminava o edifício inteiro. Falava o mínimo possível, e mesmo assim, somente com Elisabete, que de amiga de todas tornou-se uma rival – escolha dela? Mal sabia ela, porém, que as atenções do amigo cercava a sala inteira, não com palavras, mas com olhar de morcego – já que fingia não enxergar. E Elisabete, que, como toda mulher apaixonada, vendava os olhos para brincar na escuridão sem perceber os riscos do jogo, mal entendia o conflito em que estávamos, todas nós do escritório, envolvidas por causa daquele forasteiro sedutor.


    No entanto, assim como Édipo, até mesmo na cegueira, quando alguém se corta durante a brincadeira ou bate a cabeça na parede, a dor é sentida, mesmo sem ver a cor do sangue escorrendo pelo rosto. E Elisabete era cega, mas não tinha o corpo-máquina, não era insensível.


    Fortunato (finalmente, não posso me esquecer de falar sobre ele!) não namorava há três anos. Aparentava uns trinta, era atlético e bem-humorado. Não se envolvia nem mantinha contatos confidenciais com ninguém do trabalho, o que era lamentável, pois todas as paredes tinham olhos, corações e ouvidos. Somente falava, e ainda assim sobre assuntos desperdiçáveis, com Elisabete – a cabra-cega no brinquedo.


    O jogo, então, foi se desenrolando e tudo indicava que haveria um desenlace que desequilibraria todos os jogadores no final. Fortunato comandava completamente tudo, ao menos aparentemente. Se estava sempre do lado de Elisabete, estava ao mesmo tempo olhando sedutoramente para todas nós. E se olhava somente para ela, não era Elisabete a quem se destinavam todos os seus sorrisos.


    Certo dia, porém, um flagrante prometeria ter feito-lhe cair a máscara. Pouco antes das 9 horas da manhã, quando todos estavam chegavam ao trabalho, vimos uma mulher que trajava um vestido marrom e longas botas escuras, aguardar o mancebo. Estranhamos aquela novidade e nos mantivemos atentas: quem seria aquela perua? Fortunato chegou logo em seguida e a palidez, assim que se deparou com tal moça, tomou-lhe conta do corpo inteiro. Ainda gélido, pediu licença ao chefe, afirmando que teria de resolver um problema com uma irmã sua, depois a tomou pelo braço, fechando a porta atrás de si cautelosamente. A princípio, todas respiramos aliviadas, já que Fortunato chamara-lhe “irmã”, somente mais tarde é que compreendemos o que realmente havia se passado. Foi nessa ocasião também que notei alguma coisa estranha na tez de Elisabete: finalmente, ela parecia preocupada. Talvez fosse ciúme, naquele tempo, eu não soube decifrar o que havia de errado.


    O tempo foi passando, e Fortunato foi promovido de forasteiro e novato para amigo íntimo do chefe. Ainda lembro que os dois se reuniam semanalmente numa sala reservada, separada por um vidro através do qual espiávamos os braços de Fortunato, o pescoço de Fortunato, o peito de Fortunato, e tudo o que a ele pertencia. Enquanto lá estavam, um tom de cumplicidade era notado frequentemente. Mas o que mais surpreendia-nos era parecerem realmente estar falando sobre negócios. Ana Paula, a gerente de cabelos brancos e muita experiência, nada comentava sobre aquela intimidade, mas seu semblante revelava enorme desconfiança e insatisfação. Ainda lembro que, quatro meses mais tarde, estávamos vendo Ana Paula juntando seus pertences pessoais e despedindo-se lacrimejante de todos, menos de Fortunato, com o qual travou uma batalha de olhares cortantes antes de sair porta afora.


    Foi assim que Fortunato tornou-se nosso gerente e tudo indicava que não pararia por ali. Depois disso, a relação com a Elisabete (se é possível mencionar a palavra relacionamento) esfriou de maneira tão violenta, que a pobre cabra-cega sentiu-se perdida na brincadeira. Percebíamos em seu rosto a desilusão certa e temíamos pela doença de sua alma. Infelizmente, como não somos perfeitas (não podemos negar que no início, quando não supúnhamos o tamanho da desesperança da amiga) até sentimos algumas gotas de alegria polvilharem nossa autoestima ao vermos Fortunato livre, à disposição de nossas vistas gulosas. Só Deus sabe o quanto nos custou, anos depois, essa alegria egocêntrica e pecaminosa!


    Trabalhamos muito e arduamente naquela época. Para Fortunato, nada era suficiente. Tornou-se carrancudo e grosseiro, o que, apesar disso, não o diminuiu perante nossos olhos. Era até bom quando ele nos chamava para nos reprimir – era uma oportunidade que tínhamos de ficar a sós com ele e dele receber todas as atenções. Essa felicidade suicida, no entanto, não durou muito tempo; sentimo-nos trabalhando sob completa pressão e o ambiente do escritório passou a ser intolerável. Elisabete, com o orgulho ferido, foi a primeira a enfrentá-lo. Cinco minutos depois, porém, acabou sendo demitida. Uma hora depois, foi atropelada. E no dia seguinte, anunciou-se seu velório. O mal-estar tomou conta do edifício! Queríamos liberação para nos despedirmos da ex-colega, e como resposta, obtivemos um sim acompanhado de um endiabrado escárnio.


    Tudo mudou. O jogo tinha feito sua parte, e nós, jogadores, sentimos o golpe da reviravolta. Pensamos logo em exigir uma atitude de nosso chefe; mas Fortunato, o homem de poucas palavras, era conhecedor da arte da guerra, e antes de nós, preparou um horripilante e falso discurso, no qual pedia demissão e afirmava que nunca se perdoaria, pois acreditava ter sido responsável por toda a desgraça ocorrida com aquela confiável e tão prestativa profissional.


    - Peço, então, na frente de todos vocês, demissão. Porque desse dia em diante, não serei mais capaz de viver com sobriedade, estando a culpa a dormir junto ao meu travesseiro, a repetir aquela cena em que Elisabete fora despedida, por ter perdido o controle irracionalmente.


    Bastou esse discurso para nos tirar qualquer reação. Alguns de nós até se apiedou do falsário, abraçaram-no e incentivaram-no a prosseguir seu excelente trabalho de gerência. Fiquei observando-o discretamente, não o abracei nem lhe disse palavras otimistas. Mantive-me próxima a um canto, no intento de minha desaprovação passar despercebida; mas como vinha lhes dizendo, Fortunato era um ótimo jogador, e todo perfeito jogador sabe reconhecer seus adversários. Enquanto recebia abraços e apertos de mãos incentivadores, ele fixou seu olhar em mim... e, como também sou observadora, percebi que aquilo era um sinal de que uma guerra se anunciava! Não desviei o olhar, a guerra, portanto, estava aceita!


    Reconheci, então, já no dia seguinte, as armas iniciais que o oponente usaria. Sobrecarregou-me tanto de notas fiscais a serem computadas, que somente pude ir para casa duas horas depois do horário previsto. Insistiu nisso. Punha os documentos sobre minha mesa, e ordenava com malícia:


    - Vê se não digita nada errado. Se algo der errado, a responsabilidade é apenas sua. Mas não se preocupe, em último caso, revisarei tudo. É claro que espero não achar nenhum equívoco, entretanto, se...


    - Você não achará nenhum, senhor Fortunato. Não é para errar que vocês me pagam, não é mesmo?


    Fez sinal que sim com a cabeça, e saiu remoendo-se. Trabalhei excessivamente durante dois meses, e quando estava a ponto de perder a cabeça, surgiu o chefe a minha frente. Estava ele extremamente bem-humorado naquele dia, e graças àquele aparecimento, controlei-me, tomei fôlego e resolvi mudar a estratégia, conversando habilmente com o superior:


    - Olha, chefe. Talvez eu possa dar uma sugestão de melhoria para o escritório.


    - Pois estamos sempre dispostos a ouvir, Clarice! Principalmente, em se tratando de melhorias! – respondeu bonachão.


    - Sabe, não me importo de fazer hora-extra diariamente. Meu ordenado tem sido consideravelmente melhor nestes últimos dois meses. Entretanto, se dividirmos meu trabalho com mais alguém que tenha as tarefas menos trabalhosas, não será mais necessário que o escritório pague hora-extra.


    O chefe baixou a cabeça, pensativo por um instante. Um minuto depois, voltou a olhar para mim. Sorriu, e disse que minha ideia tinha sido perfeita. Voltei então, satisfeita, para minha mesa, não sem antes olhar alegremente para Fortunato, que mordeu o lábio inferior e calou-se, resignado no seu canto. A primeira batalha estava ganha; por outro lado, eu sabia que a guerra ainda prometia continuar por um bom tempo.


    Calados, eu de um lado da sala, Fortunato do outro, mas de frente para mim. Sei que percebiam os olhares que trocávamos, talvez até minhas colegas invejavam-me, porém, tudo isso porque não conseguiam perceber a real afronta disfarçada de simpatia mútua. No almoço, para piorar, Fortunato era só atenção para comigo: fazia questão de me servir a salada e a água mineral. Sentava-se sempre ao meu lado e fazia questão de perguntar-me sobre assuntos pessoais: fingia-se interessado em tudo – família, hobbies, estudos... Talvez ninguém notasse nossa guerra íntima, mas minhas respostas, que aparentavam ser inofensivas, agrediam ferozmente meu adversário. Este também era sutil em seu jogo, de forma que nossa disputa dava a impressão de uma recíproca amizade e, para as interessadas em Fortunato, indicava o prenúncio de um relacionamento.


    Refletindo bem, não posso dizer que nunca ficara deslumbrada com o falsário. Atraente, maduro, inteligente e aparentemente simpático, era um conquistador nato. Mexia com os nervos de todas nós, e não fosse Elisabete ter morrido e sua máscara caído para mim, talvez tivesse continuado apaixonada por ele (está certo, não tinha lhes contado isso antes, talvez por escrúpulos. Mas agora que deixei escapar, não pretendo lhes negar: fui realmente apaixonada por Fortunato – aquele ambicioso crápula!). E como havia afirmado antes, ele logo surgiria com uma nova arma. Pois bem... foi a arma da sedução o próximo passo de meu inimigo.


    Aquele tempo foi um dos mais difíceis da minha vida. Eu sei... contradigo-me, atrapalho-me. Paixão e ódio, naquela época, eu não soube diferenciar bem. Arrependi-me depois, no entanto, ainda hoje me pergunto se eu saberia compreender o que se passou se nada daquilo tivesse acontecido. Na verdade, tento me confortar, justificando que eu precisava pagar para ver! Ficava indecisa, tensa, dividida entre o bem e o mal. Para ser sincera, foi Fortunato quem me despertou meu lado esquerdo, meu lado cruel e perverso. Sem ele (outra desculpa confortante!), talvez eu não tivesse conhecido as ambiguidades tão evidentes em todos os seres humanos!


    Como ia dizendo, Fortunato havia mudado de estratégia, partiu para a sedução. Eu, que sempre fora a primeira a chegar ao escritório, passei a ser a segunda. Chegando lá, deparei-me certa manhã, com ele em frente à porta da sala, a ler concentrado, seu jornal. Abriu seu sorriso radiante ao me ver chegar, foi completamente atencioso e galante... Fortunato sabia, sempre soube o que fazia. Ainda lembro da primeira vez que o vi desequilibrado; ele, naquela hora, também percebeu que dali em diante, acabaria se perdendo. Mas vamos ordenar os fatos: isso não é assunto para agora. Voltando à cena daquela irreverente recepção no escritório, vi o antigo Fortunato voltar a ser o que aparentava ter sido antes da revelação. Parecia sincero e quem não o conhecesse, juraria que estava apaixonado.


    Passou, então, a esperar-me diariamente naquele mesmo local. Eu sabia, de fato, das suas intenções, só não tinha consciência de que eu não era tão forte quanto pensava. Havia estado apaixonada por ele, de fato, mas tudo havia se desmanchado em cinzas. Foi acreditando nisso, então, que acabei cedendo ao seu jogo, acreditando friamente que tinha total controle sobre aquela partida. Ele, finalmente, num dia chuvoso, ofereceu-me uma carona depois do trabalho. Não aceitei, e disse categoricamente que não precisava de favor algum. Um minuto depois, contudo, analisando e confiando que nunca perderia o comando, batia no vidro do carro e nele entrava, completamente encharcada. Convidei-o para entrar... maldita mania de me envolver em perigo! E enquanto preparava o café, na cozinha da qual podia vê-lo na sala sem ser percebida, vi-o analisar móvel por móvel e objeto por objeto até percorrer ligeiramente com o tato, os livros que havia na estante. O arqui-inimigo estava, enfim, reconhecendo o campo de batalha. E se verificava rapidamente meus livros, foi com singular agilidade que achou meu diário. Nada fiz, não o interrompi nenhum minuto sequer. Tinha o controle da situação: ele nada poderia achar de estratégia bélica num diário abandonado há longo tempo. Vi-o folhá-lo com irremediável perspicácia, até um cartão cair. Juntou-o, olhou para a cozinha a ver se eu me aproximava, dobrou-o e enfiou-o no bolso. Foi nesse instante que entrei, a fim de surpreendê-lo naquele ato vergonhoso. Fortunato ainda tentou disfarçar e devolver o diário ao seu antigo habitat imperceptivelmente. E quanto a mim, fingi-me distraída, adocei seu café e passamos a conversar como esses amigos que parecem não ter segredos um com outro.


    Não deveria, mas gostei do passatempo. Senti-me forte. Fortunato não era, enfim, o guerreiro irredutível como temia. Tanto que nossos encontros passaram a se tornar mais frequentes e com a frequência, acabei tornando-me a cabra-cega do jogo. O mundo dava voltas, e desde então eu nunca mais duvidei disso.


    Foi num instante de distração e empolgação alcoólica que Fortunato vendou-me as vistas. Não, a culpa não foi dele. Eu mesma decidi ocupar-me apenas com seu lado direito e esquecer tudo que via nele de nefasto e inescrupuloso. Ele soube envolver-me, é certo. Beijou-me e percorreu meu corpo com suas mãos quentes e afoitas. Reduziu-me, finalmente, a uma mulher que precisava, e muito, ser amada, mesmo sabendo da ilusão que revestia o conto de fadas. Pois bem, amanhecemos juntos, e no despertar, percebi o quanto sua estatura era maior que a que eu supunha, o quanto era forte e maciçamente onipotente. O meu rival havia, recorrendo ao cansaço, vencido uma batalha. Fiz de tudo para sair da brincadeira e não ter o mesmo fim de Elisabete, mas ele havia posto a venda em meus olhos com tanto vigor que ainda hoje a levo, meio rasgada, em minha bolsa.


    - Bom dia, meu anjo! – disse ele, beijando-me acidamente os lábios.


    Esse relacionamento corrosivo aprisionou-me por mais de um ano, período no qual sua ascensão no escritório foi exultante. Julgava ter-me ao seu lado, e infelizmente, estava mesmo extremamente subjugada a ele. Enquanto isso, seus mandos e desmandos tornavam o local de ganha-pão um suplício para os capazes e um inferno para os fracos. Inteligentemente, ele manteve-me neutra. Evitava qualquer contato comigo durante o trabalho, de forma que minhas colegas pensavam que a amizade colorida havia claramente desbotado em sua essência. À noite, entretanto, transformávamos meu quarto num pecaminoso céu de venturas mentirosas. E teria continuado assim, aprisionando-me, se Raflévia, a esposa do chefe, não tivesse surgido no escritório e sido apresentada ao braço direito do marido.


    Foi doloroso quando a venda caiu de meu rosto. Mal pude enxergar diante de tamanha claridade, com meus olhos já habituados à escuridão tranquilizadora! Doeu, e muito. Eis o desequilíbrio que lhes havia mencionado antes, o primeiro que vi no semblante de Fortunato. Vi-o em êxtase diante de Raflévia, que para aumentar meu sofrimento, sentiu-se levitar diante de tão apresentável cavalheiro. Anunciava-se, enfim, o lance maior. E para mim, não tivesse sido minha obscuridade despertada com semelhante vigarista, o jogo já teria terminado. Mal pudera sobreviver à brincadeira e teria de resgatar as forças e reassumir meu papel de adversária e isso era muito mais que uma simples questão de orgulho ou reafirmação pessoal – um guerreiro não vive sem honra! Pois bem, fiz o que fiz, ou ao menos, tentei fazer de tudo para resgatá-la.


    Desde aquele dia, as visitas da esposa do chefe passaram a se tornar cada vez mais frequentes. Fazia questão de almoçar conosco e sua amabilidade superficial tornava-a tão simpática, que quem a via de fora, não fosse seu trajar superior, juraria que fazia parte de nossa equipe de trabalho. Porém, cedo ou tarde, eu sabia que todas essas atenções se esgotariam e esse dia revelaria que, enfim, o golpe teria tido início.

    Não me enganei, infelizmente. Decorrido um mês (meu Deus, apenas um mês!), suas visitas cessaram por completo. Fortunato cresceu irreversivelmente aos nossos olhos e aos do chefe. Passou para uma sala separada e já o substituía nas reuniões de negócio mais importantes. Parecia ter se esquecido de mim, mas soubera que ele havia feito um levantamento de meus comentários com meus colegas. Ah, Fortunato, tu me ensinaste o quanto as paredes ouviam! Cuidadosamente, fiz diversos comentários, mas nenhum que me descobrissem meus reais intentos! Os que ele soube, somente demonstravam uma extremada dedicação e preocupação para com o seu sucesso. Tranquilizou-se, pois; enquanto eu o observava tão discretamente, que nem o mais vivo jogador teria percebido meus passos. Assim como ele, daria o bote, vencendo-o pelo cansaço! Talvez deveria punir-me ao ter desviado-me do caminho correto. Mas a verdade é só uma, e a verdade é que eu queria vingança! Queria resgatar não sei o quê que eu havia perdido na noite em que ele pôs suas mãos em mim. Mesmo que pudesse ser uma razão mentirosa, queria culpá-lo por ter revelado a mim mesma uma pessoa que desconhecia. Queria culpá-lo, pois não podia admitir que essa dualidade entre o bem e o mal sempre existira dentro de mim! Queria culpá-lo, pois, sim.


    E assim como cão sem dono, fingi-me sua amiga, sugerindo que sempre estaria ali, à sua espera, aguardando um mísero afago e uma perigosa proteção. Fortunato parecia convencido de minha nova posição: fui, ao menos aparentemente, uma pobre apaixonada que nunca teria perdido as esperanças de um amor por completo com o príncipe encantado. Vaidade: esse foi o principal motivo da suposta derrota final desse homem tão inescrupulosamente inteligente! Em casa, tomava seu retrato em minhas mãos e tentava desvendar o mistério: onde estaria o verdadeiro Fortunato? Seria ele, de fato, essa cobra voraz, capaz de manipular todos à sua volta? Que Fortunato era esse, tão capaz de seduzir quem quer que fosse? Eu era uma carta fora do seu baralho, mas foi de fora que finalmente pude compreender melhor o seu jogo.


    Comecei a investigá-lo exaustivamente. Apresentando três atestados, procurei me ausentar exatamente nos dias em que ele comparecia a duvidáveis reuniões. Seguia-o, de táxi, mas somente na terceira espionagem flagrei sua paixão fulminante com a mulher do chefe, caso que não me surpreendeu absolutamente. Vi-a deixar o carro no estacionamento do shopping para, depois, entrar no dele. Beijaram-se compulsivamente antes de saírem dali, uma ousadia que logo seria fotografada por mim. Três quilômetros depois, entravam num motel requintado, ela sempre gesticulando e mexendo no cabelo. Tudo que me foi possível, foi sofrivelmente registrado, graças ao descuido da paixão.


    No escritório, minha investigação não foi menos exaustiva. Dirigia-me com frequência a sua sala, e com uma atenção apaixonada, perguntava-lhe se estava tudo bem. Fortunato respondia vaidoso que não havia nada com que eu me preocupasse, pois embora estivesse extremamente atarefado, tinha grande experiência, e “com experiência, tudo se resolve, não é mesmo?” Não foi fácil pegá-lo distraído. Minhas visitas a sua sala eram praticamente diárias, e para mim já restavam poucos argumentos para ali estar. Mas todo jogador é falível. E no seu primeiro descuido, quando teve que me deixar esperando para atender a uma ligação reservada, desvendei finalmente seu plano ambicioso: havia alguns papéis embaixo de um livro preto. Levantei-o discretamente e vi que se referia a transferências de bens para o seu nome. Sobressaltada, retornei à minha mesa com a cabeça fervendo. Então era isso: Raflévia e ele planejavam um grande golpe.


    Já em casa, olhava para as fotos que comprovavam o adultério e pensava no que tramavam. Minha vingança (ou missão, como depois passei a chamar meu intento, na tentativa de tranquilizar a consciência) estava prestes a se cumprir. Reuni as provas, deitei-me, mas não pude dormir. Um bom observador sabe que nunca deve subestimar o adversário. Em meu quarto, em meio a um devaneio, via Fortunato caminhar em volta de minha cama, ameaçando-me com seu olhar de carnívoro ferido. Reduzi-me o quanto pude, agora eu tinha consciência de minhas fraquezas e, naquele momento, eu não passava de uma presa a estar paralisada no mais terrível e angustiante medo. Fechava os olhos, para fugir daquela aparição. Porém, aquela imagem aterrorizadora já invadia meus sonhos e avançava, até tomar conta por completo da profundidade de minha alma.


    A noite demorou a passar. Olhei-me no espelho e permaneci longos minutos ali, tentando me reconhecer embaixo de exageradas olheiras. Quando percebi que não mais encontraria minha face, não importando o tempo em que a procurasse, juntei as provas, coloquei-as na bolsa, e corri, atrasada, ao escritório.


    Suava frio, dividia-me entre a coragem e a covardia. Entrei arquejante no elevador que, desta vez, abriria para uma porta desconhecida. Avancei para o escritório e uma surpresa me estarreceu:


    Deparei-me com Fortunato arrumando suas coisas, cabisbaixo e superficialmente resignado, tranquilo. Logo vi que toda a calmaria era apenas o prenúncio da desgraça. Perguntei às colegas do ocorrido e soube que o chefe descobrira uma fraude de grandes valores no escritório. Confesso que respirei aliviada, enquanto Fortunato, ferido e humilhado, preparava-se para sair de uma vez por todas da nossa vida. Quando, enfim, guardou o livro preto dentro de sua mala, olhou friamente através dos vidros para todos nós. Saiu, então, de sua sala, aproximou-se, e fixou seus olhos em mim. Estremeci. Havia conhecido diversas faces suas, contudo, aquela revelava muito mais que um perdedor – eram os olhos de quem finalmente me reconhecia como uma jogadora à sua altura. Fugi daquele olhar, pondo definitivamente um ponto final na guerra. O terrível jogo, para mim, tinha terminado sem a minha influência. Mas Fortunato, infelizmente, não sabia disso. E retirou-se com o mesmo silêncio calculado com que tinha entrado, pela primeira vez, naquele local.


    Depois da saída de Fortunato do escritório, a tranquilidade voltou a amenizar os dias de trabalho excessivo. No início, o receio ainda prometia perturbar todos nós, no entanto, o tempo cicatrizaria as consequências devastadoras da tempestade medonha que havia varrido o ambiente. Nunca mais ouvimos ou recebemos notícias do vilão. Graduei-me, enfim, em Administração, e depois de sete anos de fiel dedicação, pedi demissão para trabalhar numa grande empresa de cosméticos. Concorri com centenas de profissionais talentosos e não pude acreditar quando soube que a vaga era minha.


    Na primeira semana de trabalho, demonstraram-me todas as etapas – da produção até a entrega dos produtos. Somente na segunda semana, realizariam uma reunião na qual conheceria os superiores da minha área e tratariam de assuntos gerais de administração. Fui a terceira a chegar, receosa, à sala de reuniões. Os demais foram chegando minutos depois de mim, todos demonstrando generosidade formal. Iam ocupando as cadeiras, observando a uma ordem hierárquica. À minha frente, uma ainda estava vaga – pertencia ao diretor que ainda não havia chegado, informaram-me logo. Fiz gesto de entendida com a cabeça e retirei a agenda da bolsa. Foi nesse instante que entrou o diretor, altivo e com um sorriso que iluminou toda a sala. Dei um grito de pavor, o que acabou por chamar a atenção de todos – estava perplexa. Fortunato sentou-se, finalmente, à minha frente, e com seu olhar sedento e vingativo, deu reinício ao jogo.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

2014: FUTEBÓIS DA EXCLUSÃO



Se me perguntarem o que acho a respeito da Copa no Brasil, direi, sem dúvida alguma, que esse evento marcará uma nova era social em nosso país. Social? Exatamente, e não é preciso ser um analista político para saber as razões disso.
Para explicar por que acredito numa nova era social, farei uma analogia com o tempo em que vivia em Gramado – a cidade do Cinema. Àquela época, eu contava com apenas 22 anos e havia me mudado para lá devido à minha profissão. Professora de Inglês extremamente dedicada, havia passado semanas escrevendo o material didático que os alunos fotocopiariam, tudo porque não tinham recursos financeiros para adquirir o livro da matéria. Procurava ser o mais eficiente que eu podia. Meu objetivo era levar àquele público o conhecimento básico da língua inglesa e tinha bastante entusiasmo para isso.
Entretanto, durante todas manhãs, não sentia que meus alunos estavam tão entusiasmados quanto eu. Chegavam exaustos para os estudos, porque trabalhavam às tardes e às noites, envolvidos com o turismo. Havia os que trabalhavam em sorveterias; outros, em chocolatarias; alguns, em lojas de confecções em couro; muitos, em restaurantes. A segunda-feira era o pior dia da semana, pois o cansaço do fim de semana se tornava visível diante de todos.
“São apenas adolescentes! Contudo, fazem a cidade de mover!”, pensava, solidária com aquela labuta.
Então, o Festival de Cinema teve início. Como aquele era o meu primeiro ano em Gramado, era natural que eu estivesse cheia de expectativas. Certamente, poderia ver vários artistas e participar de vários eventos, principalmente porque trabalhava no maior colégio da cidade.
No entanto, a euforia logo passou, deixando-me um aprendizado e tanto: havia lugar ao sol, mas esse lugar era reservado apenas para alguns. O evento não estava sendo feito para um grande público. Nem eu nem meus alunos podíamos participar do festival. O Festival de Cinema funcionava, de fato, como um cinema, em que tudo se passava na tela, somente na tela, enquanto nós, o público, apenas assistíamos àquilo à certa distância, preferencialmente bem longe.
Compartilho a minha frustração: em cinco anos de trabalho, vi o colégio estadual da cidade ser convidado apenas para algumas meras exibições de filmes. Isso, claro, somente quando não havia outro público de maior requinte. Servíamos apenas para ocupar espaço, já que poltronas vazias transmitiriam uma imagem negativa do evento.
Neste ano, a Copa será realizada no Brasil. De igual forma, a maioria de nós ficará de fora dos estádios, de fora dos hotéis de luxo onde estarão as seleções, de fora do orçamento do governo federal, enfim, é a vida novamente reservando o que há de melhor apenas para alguns.
Por outro lado, há um quê de insatisfação no ar. Os movimentos de protesto indicam que a sociedade está se organizando para demonstrar toda a frustração de estar sendo constantemente excluída. A princípio, a dura realidade parece não ter mudado nada. Continuamos trabalhando, e muito, em benefício de uma minoria. E para que haja uma mudança efetiva, resta-nos continuar demonstrando (sempre pacificamente) que, embora nos ignorem, continuamos aqui e já que estamos aqui, também queremos nosso lugar!